quinta-feira, 30 de junho de 2011

Lágrimas e suspiros









Todos os meus filmes podiam ser filmados a preto e branco, menos "Lágrimas e suspiros". No roteiro está mencionado que imagino a cor vemelha como sendo o interior da alma. Quando era criança, via a alma como se fosse a sombra de um dragão, de um cinzento-azulado, pairando sobre nós sob a forma de um ser alado, meio ave meio peixe. Mas tudo dentro desse dragão era vermelho.
A primeira cena surgia em minha mente o tempo todo: um quarto com papel de parede vermelho e mulheres vestidas de branco. Acontece que certas imagens voltam teimosamente ao meu cérebro sem que eu perceba a intenção delas. Depois desaparecem, para voltarem mais uma vez idênticas às anteriores.
Repetidas vezes eu rechaçara esta visão, recusando-me a usá-la como ponto de partida para um filme ou para o que quer que fosse. Mas ela foi teimosa e, contra minha vontade, identifiquei-a; trata-se de três mulheres que esperam o falecimento da quarta. E velam por turnos.
Creio que o filme – ou o que quer que isso seja – se compõe deste poema: Um ser humano deixa esta vida, mas, como num pesadelo, detém-se a meio caminho, pedindo aos que ficam ternura, reconciliação, libertação. Pedindo tudo, tudo. Estão mais duas pessoas presentes, e tanto as acções como os pensamentos delas estão em relação com a morte, a moribunda. A terceira pessoa presente vai redimir a doente, incutindo-lhe paz, acompanhando-a na fase final.

(Ingmar Bergman, Imagens)

O marulho dos seus versos antigos

Canção divina as cousas comovia,
E de ternura as árvores choravam...
E lembrava o luar a luz do dia
E os ribeiros, extáticos, paravam.

Era Orfeu, de inspirado, que descia
Às entranhas da terra! E se afundavam
Os seus olhos na noite, muda e fria,
Onde as pálidas sombras vagueavam.

Eurídice, o seu morto e triste amor,
Ouvindo-o, tomou forma e viva cor,
Íntima luz à face lhe subiu...

Mas Orfeu, pobre amante enlouquecido,
Quis ver aquele corpo estremecido...
E, outra vez sombra, Eurídice fugiu...


(Teixeira de Pascoaes, A sombra de Eurídice)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

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O inferno é o real absoluto. Quanto mais infernal mais verdadeiro. Por enquanto.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

Acto Primeiro

AGRIFONTE

Dizia, amigo Hamlet, que os mortos estão como estamos nós: Também os vivos pouco diferem um dos outros e apenas se distinguem os que demonstram como um teorema. Mas, dizei: que é feito de Margarida?

HAMLET

Margarida? Que Margarida? A que se praz em tíbios prados ou a que infausta e abaritonada se desvaneceu nos teus braços?

AGRIFONTE

A que me ofereceu esta cigarreira. (Oferece um cigarro) Por bem, aceitai, fumai....

HAMLET

Muito obrigado.

AGRIFONTE

Plo Deus vivo, não o acendeis, ou sabereis quem eu sou.

HAMLET

Oh, Ontem mesmo vosso tio telegrafou dizendo-me que espécie de indivíduo sois.

AGRIFONTE

(Estranhando) Tio? Que tio? Tenho sete.

HAMLET

O oitavo, o mais documentado, o que bem a seu pesar não pôde dar-vos o ser.

AGRIFONTE

Plo Santo Nome, senhor, dizei então quem é o filho da mãe!

HAMLET

Pois aí vai, ainda que vos pese. Sois Dona Iracunda de Álvaro Meno mãe putativa da que em outros tempos conheceu diástoles incríveis.

AGRIFONTE

(Rebarbativo) Deixai vossos provérbios para depois e contemplai a vossa obra. (Hamlet olha na direcção apontada. Um espantoso quadro se lhe insinua. Num confortável ataúde jaz Mitríades decomposto e episcopal.)

MITRÍADES

(Encorporando-se) Oh, Hamlet! Oh, Agrifonte! Não mais vereis Margarida!

HAMLET E AGRIFONTE

Que dizeis, insensato, em tão horrenda putrefacção?

MITRÍADES

Margarida foi ao campo das interrogações. Quem ousa ir ao campo das interrogações nunca mais volta.

HAMLET E AGRIFONTE

Ah, fideputa velhaco! Vós também amais Margarida.

MITRÍADES

Eu? Não odeio nem amo. Mas ela será minha esposa entre as aladas sombras.

Hamlet e Agrifonte ardem em maquilhada ira. 
Um sol vindicativo dardeja mil raios no horizonte.
As sombras dos três personagens 
aparecem obstinadas e aplanadas
no deserto.

HAMLET E AGRIFONTE

Rufia, canalha, putrefacto, já vais ver!

Os dois açulam as suas sombras com à lebreus. 
Estas, grandes aranhas negras, avançam até ao
féretro de Mitríades.

MITRÍADES

Ah! Já me vencestes. Éreis o meu único adversário. Mas temei a sombra da minha sombra. A morte é mais ligeira que o sono.

As sombras dos três lutam metafisicamente 
açuladas pelos respectivos amos.
A de Agrifonte fez presa
no pescoço da de Mitríades.
Mentres, a de Hamlet ladra à lua, afugentando-a.

Um furacão impiedoso leva as três sombras,
que desaparecem gesticulando no horizonte.

Mitríades morre definitivamente 
entre torpes mecanismos.

AGRIFONTE

E agora, já sem sombras, sejamos francos, Hamlet: vós também amais Margarida.

HAMLET

Nem pensar.

AGRIFONTE

Pois, por que se bateu vossa sombra contra o nosso pobre e chorado Mitríades?

HAMLET

(Deziotisticamente) Plo amor. Em geral.

AGRIFONTE

Agora percebo tudo. (Com forte acento estrangeiro) Hamlet, prepara-te; vou contar tudo à tua mamã!

HAMLET

Conta, conta. Mentres, vou para o barroco cavalinho de cartão.

Agrifonte sai a jogar ao arco.
A mãe de Agrifonte incrustada na parede derrama
uma longínqua lágrima.
Quatro donzelas inclinam-se chorando
sobre o cadáver de Mitríades para levá-lo depois
pelo revolto caule do dia.





(Hamlet - Tragédia Cómica, Luis Buñuel (Mário Cesariny (trad.))


domingo, 19 de junho de 2011

La Passion de Jeanne d'Arc


«O mais curioso é, talvez, que muitas das crises emocionais da infância ou da adolescência de Mishima têm origem numa dessas imagens de livros ou de filmes ocidentais a que foi exposto o jovem japonês nascido em Tóquio em 1925. O rapazinho que repudiou uma bela imagem do seu livro ilustrado, porque a criada lhe explicou que se tratava, não de um cavaleiro como ele pensava, mas de uma mulher chamada Joana d'Arc e sentiu esse engano como um logro que o ofendia na sua pueril masculinidade. E, neste caso, o mais interessante para nós é que tenha sido Joana d'Arc quem lhe inspirou esta reacção e não uma das numerosas heroínas do Kabuki disfarçadas de homem. Em contrapartida, na famosa cena da primeira ejaculação diante de uma fotografia de São Sebastião de Guido Reni, compreende-se tanto melhor a sua excitação pela pintura barroca italiana quanto a arte japonesa, nem sequer nas suas gravuras eróticas conheceu, como a nossa, a glorificação do nu. Nenhuma imagem de samurai oferecido à morte lhe poderia dar a mesma impressão desse corpo musculado mas exausto, prostrado no abandono quase voluptuoso da morte (os heróis do antigo Japão amavam e morriam envoltos na carapaça de seda e aço).»


(Marguerite Yourcenar, Mishima ou a visão do vazio, surripiado d'O café dos loucos)

Não se esquecem as lágrimas de Maria Falconetti. E é-me impossível não lembrar Mishima. E, agora, junta-se-lhes Marguerite Yourcenar.

Isto para concluir que o dia foi um caos, que estou cansada e que não me apetece dormir. E acho que é desnecessário referir que as imagens são do La Passion de Jeanne d'Arc, que por sua vez foi realizado por Carl Theodor Dreyer e que data de 1928.

Desnecessário, como havia dito.


Labirinto


Mas também criou o seu labirinto?
No ensaio, no ensaio. Há gente que pensa que há pessoas que, excepcionalmente, sabem o que querem. O Pessoa não sei se chegou a algo que tenha, por dentro de si próprio, de positivo na vida. A tragédia humana não é o sujeito não saber qual é a sua vocação para aquilo que tem destinado. Acontece que eu quis sempre andar pelos dois passeios da vida e, às vezes, em sentido contrário. É de um tipo que não regula bem da cabeça [risos], e que desestabiliza os outros com quem vive...

Sofre com isso?
Se não tivesse o mínimo de auto-ironia podia sofrer mais. Assim, criei uma máscara.

(Revista ler, Eduardo Lourenço em entrevista a Carlos Câmara Leme, aqui)



Ruined man

Sometimes, however, to be a “ruined man” is itself a vocation.




(T.S. Elliot sobre Coleridge)


Estou de férias e em piquenique mental.

Este «bárbaro»

D. H. Lawrence, numa página fulgurante da sua Correspondência - que, apesar de escrita há mais de cinquenta anos, a hipocrisia britânica, bem mais que o seu império, ainda não conseguiu engolir - fatigado de tanto discurso sobre a virtude dos intelectuais, máscara não poucas vezes utilizada como disfarce de uma trágica incapacidade de amar, exaltou dionisicamente a inteligência da carne.
(...)


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1980])

Corpo adormecido

Terra: se um dia lhe tocares
o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio,
e sê leve para quem o foi contigo.


Dá-lhe o meu cabelo para sonho,
e deixa as minhas mãos para tecer
a mágoa infinita das raízes
que um dia no seu corpo hão-de beber.


(Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos)

Macbeth's fault

Macbeth hath killed sleep, the gentle sleep






Tragédia Cómica.

Insónia.

3:38

Simpaticamente duros

Estávamos nobremente desinteressados, cordialmente arrogantes, gentis e sorridentes, simpaticamente duros.

Fuga de nada

Pela primeira vez, em muito tempo, não me apeteceu fugir. Idiota, por querer o amor do amor mais profundo, tendo eu a dor da dor mais profunda. 

Não se ama um homem amargo, nunca.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

30 de Maio.

Todas estas lamentações não são estóicas.

E então?

18 de Agosto.


A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer.
Escrevo: ó Tu, tem piedade. E depois?

Basta um pouco de coragem.

Quanto mais a dor é determinada e exacta, tanto mais o instinto de vida se revolta e a ideia de suicídio tomba.

Quando em tal pensava, parecia fácil fazê-lo. No entanto, há pobres mulheres que o fizeram. O que se requer é humildade, não orgulho.

Tudo isto é asqueroso.
Palavras, não. Um gesto. Não escreverei mais.

(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

Cancro secreto

Espantas-te de que os outros passem a teu lado e não saibam, quando tu próprio passas ao lado de tanta gente sem saber: Não te interessa saber qual o pesar de cada um, o seu cancro secreto?



(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

8 de Maio.

A candência do sofrimento começou. Ao fim da tarde, ao cair da noite, o coração aperta-se-me até chegar a escuridão total.




(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

domingo, 12 de junho de 2011

L'inconnu

NANA: It's funny. Suddenly I don't know what to say. It happenes to me a lot. I know what I want to say. I think first about whether they're the right words. But when the moment comes to speak, I can't say it.

STRANGER: Yes, of course. Have you read The Three Musketeers? [...] Because in it, Porthos - Actually, this is from Twenty Years Later. Porthos is tall, strong and a little dense. He's never had a thought in his life. He has to place a bomb in a cellar to blow it up. He does it. He places the bomb, lights the fuse, and starts to run away. But just then he begins to think. About what? How it's possible to put one foot in front of the other. I'm sure that happened to you. So he stops running. He can't move forward. The bomb explodes, and the cellar caves in around him. He holds it up with his strong shoulders. But after a day or two, he's crushed to death. So the first time he thought, it killed him.
[...]
NANA: Why must one always talk? I think one should often just keep quiet, live in silence. The more one talks, the less the words mean.

STRANGER: Perhaps, but can one do that? [...] It's always struck me, the fact we can't live without speaking.

NANA: But it would be nice.

STRANGER: Yes, it would be nice, wouldn't it? Sort of like we loved one another more. But it's impossible. No one's been able to.

NANA: But why? Words should express just what one wants to say. Do they betray us?

STRANGER: Yes, but we betray them too. One should be able to express oneself. We manage to write things quite well. It's extraordinary that someone like Plato can still be understood. People really do understand him. Yet he wrote in Greek 2,500 years ago. No one really knows the language, not exactly. Yet something gets through, so we should be able to express ourselves. And we have to.

NANA: Why do we have to? To understand each other?

STRANGER: We must think, and for thought we need words. There's no other way to think. To communicate, one must speak. That's our life.

NANA: Yes, but the same time, it's very hard. Whereas I think life should be easy. [...]

STRANGER: I believe, one learns to speak well only when one has renounced life for a while. That's the price.

NANA: So to speak is fatal?

STRANGER: Speaking is almost a resurrection in relation to life. Speaking is a different life from when one does not speak. So to live speaking, one must pass through the death of life without speaking. [...] there's a kind of ascetic rule that stops one from speaking well until one sees life with detachment.

NANA: But one can't live everyday life with... I don't know...

STRANGER: ...Deatchment? We go back and forth. That's why we pass from silence to words. We swing between the two, because it's the movement of life. From everyday life one rises to a life - let's call it superior - why not? It's the thinking life. But the thinking life presupposes that one has killed off a life that's too mundane, too rudimentary.

NANA: Then thinking and speaking are the same thing?

STRANGER: I believe so. It's Plato, you know. It's an old idea. I don't think one can distinguish a thought from the words that express it. A moment of thought can only be grabbed through words.

NANA: So to speak is to risk lying?

STRANGER: Lies too are part of our quest. There's little difference between an error and a lie. [...] a subtle lie often differs little from an error. One's searching for something and can't find the right word. That's why sou didn't know what to say before. I think you were afraid of not finding the right word.

NANA: How can one be sure of having found the right word?

STRANGER: One must work at it. It only comes with effort. To say what must be said in the appropriate way, that is, that doesn't hurt, that says what must be said, does what must be done, without hurting or wounding anyone.

NANA: One must try to act in good faith.

(Jean-Luc Godard, Vivre sa vie, 1962, para ver aqui)

A ideia é que, se paras para pensar na vida, ela esmaga-te. E a determinada altura isso é inevitável. E pensas, devias questionar menos e saber mais. Mas não, é mesmo de cara à la pared

Pavese sobre a arte moderna

12 de Fevereiro.


A arte moderna é - na medida em que vale qualquer coisa - um regresso à infância. O seu tema eterno é a descoberta das coisas, descoberta que apenas pode acontecer, na sua forma mais pura, na recordação da infância. Isto é o efeito da all-pervading consciência do artista moderno (historicismo, noção da arte como actividade auto-suficiente, individualismo), que o faz viver, a partir dos dezasseis anos, num estado de tensão - quer dizer, num estado que não é próprio à absorção, que não é ingénuo. Em arte, só se exprime bem aquilo que foi absorvido ingenuamente. Só resta os artistas fazerem meia-volta e inspirarem-se na época em que ainda eram artistas, ou seja, a infância. 

26 de Fevereiro.


A grande arte moderna é sempre irónica, tal como a antiga era religiosa. Assim como o sentimento do sagrado radicava as imagens para além do mundo da realidade, dando-lhes um fundo e antecedentes prenhes de significado, a ironia descobre nas imagens e sob elas um vasto campo de jogo intelectual, uma vibrante atmosfera de hábitos imagísticos e raciocinantes, que transformam as coisas representadas em símbolo de uma realidade mais significativa. Para ironizar não é necessário brincar (assim como para sagrar não é necessário recorrer à liturgia), basta construir as imagens segundo uma norma que as supere ou domine.


(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

Leitura de Rosseau

«...custa-me imaginar os sentimentos desagradáveis» (vol. II, p. 93)

«As pessoas pensavam que eu podia escrever por ofício como todos os outros homens de letras, ao passo que só soube escrever movido pela paixão» (vol. II, p. 285)

Objectividade

Quando uma mulher casa, pertence a outro; e quando pertence a outro, nada mais há a dizer-lhe.





(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

Realidade-personagem


Inverno 41 - 42


Nunca estamos completamente sós no mundo. Na pior das hipóteses, tem-se sempre a companhia de um rapaz, de um adolescente e, pouco a pouco, de um homem feito - daquele que fomos.

Não é que, no nosso tempo, o representante da cultura seja menos escutado do que no passado o eram o teólogo, o artista, o sábio, o filósofo, etc. É que, actualmente, tem-se consciência da massa que vive de mera propaganda. Também no passado, as massas viviam de má propaganda, mas, então, sendo a cultura elementar menos difundida, essa massa não imitava as pessoas verdadeiramente cultas e, portanto, não fazia surgir o problema de saber se estava mais ou menos em concorrência com essas pessoas cultas.

Os ambientes não devem ser descritos, mas vividos através dos sentidos da personagem - e, por conseguinte, do seu pensamento e do seu falar.
O que te desagrada como impressionismo, torna-se, assim - bedingt a partir da personagem -, vida em acção. Eis a norma que, no fundo, já procuravas no Ofício de Poeta. Que outra coisa é a narrativa do contar de Andersen, o monólogo interior de Joyce, etc., senão fazer com que a realidade-personagem se sobreponha à objectividade?

Quando uma mulher casa, pertence a outro; e quando pertence a outro, nada mais há a dizer-lhe.



(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

#3

2 de Outubro.


Porque é que o realismo naturalístico-psicológico não te basta? Porque é demasiadamente pobre.
Não se trata de descobrir uma nova existência psicológica, mas de multiplicar os pontos de vista que revelarão, na realidade normal, uma grande riqueza. É um problema de construção (regressamos ao 16 de Novembro de 35!!)


(Cesare Pavese, O Ofício de Viver)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

não haver palavras és tu a desaparecer

abandono

a quem senão a ti direi
como estou triste? mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por este absurdo. morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

não haver palavras és tu a desaparecer.


(Bernardo Pinto de Almeida)

do capítulo da devolução

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um corpo
incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino  tristeza de menino a quem
tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira
de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os
que ainda podem interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o espaço
te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua
arrasta a sua condição de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas para as tuas mãos, e elas
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de um
soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo
deserto

mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do
homem é doce e iluminada como a noite   como um
rasto de fumo sobre os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras paragens;
outra sombra, outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os meus,
altos como cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais
que descer as escadas, fechar ainda a porta do teu
quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas

(Mário Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital)

Dia de todos os demónios I





Sempre soube muito de muita coisa, sem saber nada de mim. Nunca me quis adulta, nunca me quis triste, nunca me quis cansada. E ser adulto é ser isso tudo. Anda. Anda comigo, vamos regressar doze anos atrás no tempo. Vamos pegar na mão do pai enfermo, perto do leito da morte. Vamos, pega-lhe a mão, mente e sê adulto. Sê criança e forte. Sê adulto e criança. Vamos. Quero-te forte. Forte só porque sim, porque se não o fores, também ele não o é. Vamos. Arrasta-te no tempo, arrasta-te cinco anos de fingimento. Nada te dói. És tão sublime, és tão indolor. Estás tão afastado de tudo e de todos. Silêncio. Há um silêncio gigante. Cinco anos, passaram cinco anos. Hemorragia, ele teve uma forte hemorragia. Não morreu, mas também não está vivo. A casa enche-se de sangue. Toda a gente saiu à pressa. Ficaste sozinha. Tens quase 14 anos e és um máquina. Indolor, como sempre. Humana, como nunca. Limpas a casa, limpas o sangue. Agora avança, avança até ao presente. Até essa mascara que não cai. Porque os rostos que tinhas, estão gastos, sujos. És adulta, adulta e não sabes fingir. És essa coisa, essa coisa cansada. E queres que te percebam, porque a melancolia vem sempre acompanhada de solidão. Doze anos. Como é que passaram doze anos e cresceste? Como é que que não tiveste tempo de crescer, se foste sempre adulta. Como é que foste sempre isso. Essa coisa. Essa máquina? E sabes, sabes muito de muita coisa. E não sabes nada de ti. És estranha. É isso. Queria definir-te, mas não posso, não consigo. Estás  presa ao maldito passado, aos malditos fantasmas. E questionam-te e tiram-te o chão. E é injusto. É injusto porque não sabes. E as pessoas não aceitam que não saibas. E não, não sabes. És mera (des)ilusão.

sábado, 4 de junho de 2011

XV

Caem os sonhos um a um
e o sangue estremece.
Caem, e ficam no chão
de quem os morde e esqueçe.





(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))


Ilusão.

Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam surdas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))

42.

Vê como se morre devagar
neste inverno
que se aproxima da cintura;

como a chuva entra pelo sono
e a sombra mais amarga
se vai juntando à terra nua;

ou a fria chama de cal
tarda.


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))