Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora
restavam papéis velhos, vidas mortas,
identidades, sujidade, eternidade.
Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e, pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobro, desapossado, eu.
Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.
Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar em aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Posmodenizar-me? Experienciar-me?
Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.
Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.
«Que dia? Que olhar?»
(Beckett, «Dias felizes»)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?
Estou diante de uma ponta (de uma forma)
com o - como dizer? - coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.
(Manuel António Pina, Os livros)
domingo, 25 de setembro de 2011
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Tanta terra
Tanta terra,
tantas palavras sob tantas palavras.
Regressa como um corpo o coração
à apenas existência,
lembrança de
alguma coisa lida:
o rosto da mãe, a trepadeira do jardim.
Mãe, afastei-me de mais, perdi-me
no meio de palavras minhas e palavras alheias,
quem, se eu gritar, me ouvirá entre as legiões dos anjos?
E nem isto me pertence,
a tua ausência e o meu medo;
nem estou na minha ausência,
fui como um vaso e quebrei-me ou qualquer coisa assim.
(Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)
tantas palavras sob tantas palavras.
Regressa como um corpo o coração
à apenas existência,
lembrança de
alguma coisa lida:
o rosto da mãe, a trepadeira do jardim.
Mãe, afastei-me de mais, perdi-me
no meio de palavras minhas e palavras alheias,
quem, se eu gritar, me ouvirá entre as legiões dos anjos?
E nem isto me pertence,
a tua ausência e o meu medo;
nem estou na minha ausência,
fui como um vaso e quebrei-me ou qualquer coisa assim.
(Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)
sábado, 3 de setembro de 2011
Nenhuma palavra e nenhuma lembrança
Sabes que já não durmo por dentro? Fecho os olhos e afundo-me num poço sem palavras nem espaço, continuando, sem o saberes, acordado, temendo perder-te. E tantas vezes te perdi, tantas vezes inquietamente te chamei e não respondeste! Agora, a meio da noite, escuto a tua respiração na cama a meu lado, como se eu e tudo, a minha memória e os meus sentidos (principalmente os meus sentidos), fôssemos apenas um sonho de outras pessoas, provavelmente, como poderei sabê-lo?, um sonho teu.
(Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)