domingo, 25 de setembro de 2011

«Que dia? Que olhar?»

Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora
restavam papéis velhos, vidas mortas,
identidades, sujidade, eternidade.

Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e, pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobro, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.

Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar em aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Posmodenizar-me? Experienciar-me?

Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

«Que dia? Que olhar?»
(Beckett, «Dias felizes»)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma ponta (de uma forma)
com o - como dizer? - coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.


(Manuel António Pina, Os livros)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Tanta terra

Tanta terra,
tantas palavras sob tantas palavras.
Regressa como um corpo o coração
à apenas existência,

lembrança de
alguma coisa lida:
o rosto da mãe, a trepadeira do jardim.
Mãe, afastei-me de mais, perdi-me

no meio de palavras minhas e palavras alheias,
quem, se eu gritar, me ouvirá entre as legiões dos anjos?
E nem isto me pertence,

a tua ausência e o meu medo;
nem estou na minha ausência,
fui como um vaso e quebrei-me ou qualquer coisa assim.

(Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)

sábado, 3 de setembro de 2011

Nenhuma palavra e nenhuma lembrança

Sabes que já não durmo por dentro? Fecho os olhos e afundo-me num poço sem palavras nem espaço, continuando, sem o saberes, acordado, temendo perder-te. E tantas vezes te perdi, tantas vezes inquietamente te chamei e não respondeste! Agora, a meio da noite, escuto a tua respiração na cama a meu lado, como se eu e tudo, a minha memória e os meus sentidos (principalmente os meus sentidos), fôssemos apenas um sonho de outras pessoas, provavelmente, como poderei sabê-lo?, um sonho teu.



(Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança)