segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O fazedor

Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e víviddas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão , a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavras fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e se tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou ( já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo da chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho. 
A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando de feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que de momento procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar. 
Outra lembrança. em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperava por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através das galerias que eram como redes de pedra e através de despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra. 

(Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos, Ruy Belo (trad.))

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A palavra impossível

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Pare eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce —
A palavra que nunca se profere.


(Adolfo Casais Monteiro)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Hell of Loneliness

What was this “Hell of Loneliness”? he wondered. Perhaps they had misnamed it, he thought then, but now he could understand it very well. Loneliness was an unsatisfied thirst for illusion.


(Abe Kōbō, Suna no Onna)



Assim falou

Por que no peito se vos enlouquece o coração? 




(Homero, Ilíada, Frederico Lourenço (trad.))

Folhas Secas

domingo, 20 de fevereiro de 2011

As palavras mordendo a solidão


Estás só, e é de noite, 
na cidade aberta ao vento leste
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

(...)

lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar, 

(..)

Estás só.
Desolado e só
E é de noite.

(Eugénio de Andrade, Um rio que te espera)



As palavras são um perigo. Os poemas são um perigo. Ele gosta(va) de Eugénio, eu gosto de Eugénio. Estou com medo de amanhã e de hoje. Hoje não soube a Domingo e os outros dias souberam a nada. 





Espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.



(Eugénio de Andrade)



Gato branco, nariz castanho, sem nome

Está tudo certo mas a gata

que outro mundo trará a gata que morreu.


(Ruy Belo)





Os gatos morrem senhor Eugénio, o meu morreu e não tinha nome. Depois é como aquilo da Adília que diz que "o meu gato morreu por isso já me posso suicidar", mas não, não é assim. Tenho outro e com nome. Nome de gente para ser estranho e não parecer uma substituição. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Eurydice



Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minhas


Este é o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha


Este é o poema — engano do teu rosto
No qual eu busco a abolição da morte



(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Arte poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Que nos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, o ocaso
Um triste outro, assim é a poesia
Que imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

(Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos, Ruy Belo (trad.))

No meio deste livro está este mesmo poema escrito à mão - por Ruy Belo. É uma pena não o poder mostrar.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ás vezes acordo com este grito:




- A morte! a morte!



  

Esta bisca de três


Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Há momentos em que o caixão que passa às costas d'um galego me chama à realidade, ao espanto. Desvio logo o olhar, reentro à pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e esqueço. Toda a gente forceja por criar um atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a for revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me fez suportar a vida. Ás vezes acordo com este grito: -A morte! a morde! - e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida me pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas. Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. 

(Raul Brandão, Humus)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A bela da última semana



Belo, belo, era o senhor ficar calado. Um dia decido não ter medo, e depois digo-lhe que actos altruístas desses não só não são para mim, como não são para si. Mesmo não tendo nada contra mim, não me beneficia, portanto, também não é a favor. Da próxima, poupe-me a discursos (des)moralizantes. Perdoe-me a vontade imensa que tenho de lhe dizer: vá-se foder, senhor. 


(momento altamente libertador)




Sísifo

Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,
tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa.
Esforçando-se para empurrar com as mãos e os pés,
conseguia levá-la até ao cume do monte; mas quando ia
a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,
e rolava para a planície a pedra sem vergonha.
Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros
escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.


(Homero, Odisseia, Frederico Lourenço (trad.))


Foi então que decidi escrever: "e é no regresso que Sísifo se põe a ter esperança". Mas o regresso é sempre inútil e estéril e sei muito bem que ele não devia ter qualquer esperança. A pedra cai, cai sempre. É então que surge Camus, com aquela ideia de que, apesar de tudo, é preciso imaginar Sísifo feliz. Não creio, mas se ele se põe a ter esperança, porque não?