segunda-feira, 30 de maio de 2011

#1


Uma das leis cósmicas da vida é a seguinte: é amado não quem dá, mas quem exige. Quer dizer, é amado aquele que não ama, porque quem ama dá. E compreende-se: dar é um prazer mais inesquecível do que receber; a pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária, quer dizer que a amamos.
Dar é uma paixão, quase um vício. A pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária.

(Cesare Pavese, Ofício de Viver)

#2

20 de Março.

Mon coeur reste encore à toi. Frase de condescendência de superior para inferior. Porque me alegro tanto? Sou eu, é claro, o beneficiário. Echomai ouch echo. Como possuir sem ser possuído? Tudo depende disso.
Da conversa desta tarde (com Pollone) resulta claramente que "estou seduzido" porque me comprazo em desempenhar o papel interessante de homem seduzido. Devo desempenhar, impassível, o de senhor. Serei mais amado ainda. Só assim serei amado. Mas terei ainda prazer nisso? Todas as vezes que fui eu quem possuiu, não senti prazer. Velha história.
É preciso ser possuído sem o mostrar. Será possível fazê-lo com uma "compreensão sábia e resignada"?

(Cesare Pavese, Ofício de Viver)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre a palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))

A boca sobre a boca nevava

Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.

Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com nácar da língua.

Só um grito desde o chão
pode fulminá-la.

A morte
não é um segredo
não é em nós um jardim de areia.

De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.

Vou ensinar-te como se reconhece
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.

A boca sobre a boca nevava.

(Eugénio de Andrade, Deixa a mão)

Amanhã é o precipício. 
O medo anuncia
as lágrimas.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A Birthday Present

What is this, behind this veil, is it ugly, is ti beautiful?
It is shimmering, has it breasts, has it edges?

I am sure it is unique, I am sure it is just what I want.
When I am quiet at my cooking I feel it looking, I feel it thinking

'Is this the one I am to appear for,
Is this the elect one, the one with back eye-pits and a scar?

Measuring the flour, cutting off the surplus,
Adhering to rules, to rules, to rules.

Is this the one for the annunciation?
My god, what a laugh!'

But it shimmers, it does not stop, and I think it wants me.
I would not mind if it was bones, or a pearl button.

I do not want much of a present, anyway, this year.
After all I am alive only by accident.

I would have killed myself gladly that time any possible way.
Now there are these veils, shimmering like curtains,

The diaphanous satins of a January window
White as babies' bedding and glittering with dead breath.

O ivory!

It must be a tusk there, a ghost-column.
Can you not see I do not mind what it is.

Can you not give it to me?
Do not be ashamed - I do not mind if it is small.

Do not be mean, I am ready for enormity.
Let us sit down to it, one either side, admiring the gleam,

The glaze, the mirrory variety of it.
Let us eat our las supper at it, like a hospital plate.

I know why you will not give it to me,
You are terrified

The world will go up in a shriek, and your head with it,
Bossed, brazen, an antique shield,

A marvel to your great-grandchildren.
Do not be afraid, it is not so.

I will only take it and go aside quietely.
You will not even hear me opening it, no paper crackle,

No falling ribbons, no scream at the end.
I do not think you credit me with this discretion.

If you only knew how the veils were killing my days.
To you they are only transparencies, clear ai.

But my god, the clouds are like cotton.
Armies of them. They are carbon monoxide.

Sweetly, sweetly I breath in,
Filling my veins with invisibles, with the million

Probable motes that tick the years off my life.
You are silver-suited for the occasion. O adding machine

-It is impossible for you to let something go and have it go whole?
Must you stamp each piece in purple,

Must you kill what you can?
There is this one thing I want today, and only you can give it to me.

It stands at my window, big as the sky.
It breathes from my sheets, the cold dead center

Where spilt lives congeal and stiffen to history.
Let it not come by the mail, finger by finger.

Let it not come by word of mouth, I should be sixty
By the time the whole of it was delivered, and too numb to use it.

Only let down the veil, the veil, the veil.
If it were death

I would admire the deep gravity of it, its timeless eyes.
I would know you were serious.

There would be a nobility then, the woul be a birthday.
And the knife not carve, but enter

Pure and clean as the cry of a baby,
And the universe slide from my side.

(Sylvia Plath, Selected Poems, edited by Ted Hughes)

domingo, 22 de maio de 2011

Sempre foi tarde mesmo quando ainda era muito cedo

a quem por ti pergunta digo sempre
que habitas nos caminhos que vão dar
a todas as perguntas que fazemos
depois de termos morrido muitas vezes
e sem que percebam dou-te o nome
mais perfeito que há na terra
para dar a quem vai desaparecer

eu sei que já é tarde que sempre foi tarde
mesmo quando ainda era muito cedo
mas também sei que não há mais nada para lá
dos secretos recantos das histórias que nos pertencem
e abro a janela de todos os meus sentidos
deixando que tudo o que era teu desapareça contigo
entre os murmúrios das horas que já nem recordam
o caminho de regresso ao sobressalto da tua voz
quando no parapeito das madrugadas
lentamente morríamos de frente para o sol

e não vale a pena tentar voltar ao princípio
porque a memória se encarregou de demarcar
o novo território dos teus passos

e qualquer outra estrada seria um outro deserto
onde nem sequer seríamos capazes de descobrir
o cheiro de águas perdidas

por isso vai sendo tempo de escrever nas dunas
a rota de todos os tesouros que perdemos
para que outros cheguem e digam foi então
aqui que tudo começou

vai sendo tempo de convocarmos os amigos
para que as suas mãos curem as chagas
de precipitadas despedidas

vai sendo tempo de voltares para casa
e de entre nós baixar um deus que finalmente
saiba destinar a cada um
o amor que lhe compete.



(Alice Vieira, Pelas Mãos e Pelos Olhos Eu Juro)

sábado, 14 de maio de 2011

Elegia em chamas


Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:


Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.


(Carlos de Oliveira, Terra de Harmonia)

Não, não respondeu



Depois vão-se todos embora e eu vou para casa sozinho. Achas graça a isto? Mas isto é o que acontece. Portanto o melhor é não dizer o poema, percebes?
É estar caladinho.
Bom, não sei se respondi. Não respondi, pois não?