sexta-feira, 29 de abril de 2011

A Bela acordada

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita. Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe: -Eu amo-te. E iam com ela para a cama e para a mesa. Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
-Não gosto de ti. E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça. A mulher pediu a Deus: -Faz-me ou bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre. Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam dela, tanto quando era bonita como quando era feia, como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar. Logo a seguir passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.Na cozinha do palácio as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso quando os criados foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
-Será uma sereia?- perguntaram em coro as criadas ao rei. -Não, não é uma sereia porque tem as duas pernas, muito tortas, uma mais curta que a outra. - respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar. Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas foram embora: - Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei: - Eu amo-te. Depois comeu a azeitona. E casaram logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

(Adília Lopes, Caras Baratas)

segunda-feira, 25 de abril de 2011



"O Escritor Pedro Oom Morreu de Comoção – O irreverente e talentoso poeta surrealista Pedro Oom, figura muito assídua do café Gelo ao tempo em que ali se reunia o grupo em que pontificavam Mário Cesariny de Vasconcelos, Luís Pacheco e outras personalidades daquela corrente estética, morreu ontem de comoção provocada pela queda do fascismo em Portugal. 
O insólito autor de tão belos poemas fantásticos e escatológicos como os que publicou em «Grifo» e em «Pirâmide» não resistiu à alegria da vitória. (…)" 


(Diário de Lisboa, 28/04/74)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

até que por fim
fim de um longo dia
ela desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
a da sua mãe
aquela onde a sua mãe sentada
ao longo do ano
toda vestida de negro
se foi embalando
embalando
até ao seu fim
o seu fim enfim
ausente dizia-se
um pouco ausente
mas inofensiva
morta um dia
não
uma noite
morta uma noite
fim de um longo dia
na sua cadeira de baloiço
com o seu melhor vestido negro
cabeça caída
a cadeira de baloiço
a embalá-la
embalá-la para sempre até que por fim
ao fim de um longo dia
desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
finalmente esses braços
e se embalou
embalou
os olhos fechados
fechando-se
tanto tempo
olhos
olhos ávidos
em todo o lado
em cima em baixo
aqui e ali
à sua janela
para ver
ser vista
até finalmente ao dia
fim de um longo dia
em que ela diz para si
a quem mais
tem de parar
baixa o estore e pára
tempo de descer
a escada íngreme
tudo desceu
seja ela a outra
a outra alma viva
só ela
até que por fim
ao fim de um longo dia
desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
e embalou-se
embalou-se
dizendo
não
nunca mais
à cadeira
braços finalmente
dizendo
embala-a daqui
que se lixe a vida
embala-a daqui
embala-a daqui

Tempo de parar

Até finalmente ao dia.
Fim de um longo dia
em que ela disse
disse para si
a quem mais
tempo de parar
tempo de parar
para de andar
aqui e ali
olhos
em todo o lado
em cima em baixo
à procura de um outro
um outro como ela
um outro ser como ela
um pouco como ela
errante como ela
aqui e ali
olhos
em todo o lado
em cima e em baixo
à procura de um outro
até finalmente ao dia
fim de um longo dia
em que ela disse para si
a quem mais
tempo de parar
tempo de parar
parar de andar
aqui e ali

(...)

A eterna confusão de C



a chuva e a eterna confusão a tentares inventar daquela maneira à medida que avançavas como é que podia funcionar dessa maneira para variar nunca teres existido o que é que podia dar nunca teres existido a eterna confusão a tentares confundir o ser com a coisa titubeando murmurando pelos cantos da paróquia até a língua te secar e a cabeça secar e as pernas secarem fossem de quem fossem ou a coisa renunciar fosse ela o que fosse

B

nunca um olhar para a cara dela nem para mais parte nenhuma nunca um gesto para ela nem dela para ti sempre paralelos como nas duas pontas dum eixo nunca um virado para o outro só duas manchas vagas nos limites do campo sem nunca se tocarem nem nada desse género sempre espaço entre vocês nem que fosse um centímetro nada de toques de tipo carne e osso nada mais nada menos meras sombras não fossem os juramentos

C



quando tu começaste a não saber quem eras desde Adão e Eva a tentar ver o que é que dava para variar não saber quem eras desde Adão e Eva sem noção de quem estava a dizer o que tu dizias de quem era o crânio em que estavas fechado de quem eram as misérias que te tinham tornado assim foi essa vez ou essa foi outra vez ali sozinho com os retratos dos mortos negros de velhos e da porcaria e as datas nas molduras para não haver engano de séculos sem acreditarem que eras tu até te porem para fora à chuva à hora de fechar


(Samuel Beckett, Aquela vez e outros textos, Luís Miguel Cintra e Diogo Dória (trad.))

quinta-feira, 21 de abril de 2011


(Hans Baldung Grien -'die drei Lebensalter und der Tod' 'the three ages and death' (1509-1511))

88

Como podeis entender-me? Eu falo de tão longe...

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Boca que decidíeis se isto seria himeneu ou luto, veneno ou poção medicinal, beleza ou doença, que aconteceu ao rancor e à sua aurora, a doçura?
Cabeça hedionda que se exaspera e se corrompe!


(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Viver com semelhantes homens



Tenho tanta fome, durmo sob a canícula das provas. Viajei até à exaustão, a fronte sob o enxugadouro nodoso. Para que o mal jamais se reacenda, sufoquei os seus compromissos. Apaguei o seu emblema da inépcia da minha roda de proa. Retorqui às pancadas. Matava-se de tão perto que o mundo se quis melhor. Brumário da minha alma jamais escalada, quem abre fogo no curral deserto? Já não é a vontade elíptica da escrupulosa solidão. Dupla asa dos gritos de um milhão de crimes erguendo-se repentinamente aos olhos outrora negligentes, mostrai-nos os vossos desígnios e essa vasta abdicação do remorso!

Mostra-te; nós nunca nos sentíamos satisfeitos com o sublime bem-estar das andorinhas muito magras. Ávidos de se aproximarem do amplo alívio. Incertos no tempo que o amor aumentava. Incertos, só eles, no cume do coração.
Tenho tanta fome.

(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))

Elementos

À memória de Roger Bonon,
morto em Maio de 1940 (mar do Norte)

Essa mulher à margem da afluência da rua segurava o filho nos braços como um vulcão meio extinto segura a sua cratera. As palavras que ela lhe confiava percorriam lentamente a sua cabeça antes de perfurarem a letargia da sua boca. Daqueles dois seres, sendo que um pouco menos pesava do que o casulo de uma estrela, emanava um obscuro esgotamento que em breve haveria de relaxar-se e deslizar na dissolução desse precoce final dos miseráveis. 
Rente ao chão, a noite insinuava-se ligeira na carne titubeante de amos. A seus olhos, os mundos já não se afrontavam, se é que alguma vez o tinham feito.
Nessa mulher ainda jovem devia um homem enraizar-se, mas este permanecia invisível como se o horror, não podendo mais, aí se tivesse quedado.
O ardor egoísta, privilégio dos idiotas e dos tiranos, passeando-se constantemente pelas mesmas zonas iluminadas do seu bairro, é um apostema; a vulnerabilidade que ousa descobrir-se envolve-nos intimamente.
Vislumbro o dia em que alguns homens, que não se julgarão generosos e absolvidos, visto que terão conseguido expulsar o desânimo e a submissão ao mal do trato com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que terão atacado e dominado as forças de chantagem que de todas as partes os reclamavam, vislumbro o dia em que alguns homens empreenderão sem astúcia a viagem da energia do universo. E, como a fragilidade e a inquietude de alimentam de poesia, será exigido no regresso a esses altos viajantes que se dignem lembrar-se.


(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))

segunda-feira, 11 de abril de 2011

sábado, 9 de abril de 2011

Vais avançar. Vais andar como costumas quando estás sós e pensas que alguém está olhar para ti, Deus ou eu, ou este cão ao longo do mar, ou esta gaivota trágica face ao vento, tão só frente ao objecto atlântico.

(...)



És a extensão do mar, a extensão destas coisas seladas entre si pelo teu olhar.

O mar está à tua esquerda neste momento. Ouves o barulho dele misturado com o do vento.

Em lances intermináveis, avança em direcção a ti, em direcção às colinas da costa.



Tu e o mar, para mim são um todo, um só objecto, o do meu papel nesta aventura. Também eu olho para o mar. Tens de olhar como eu, como eu olho, o mais que posso, em vez de ti.



Saíste do campo da câmara.




Estás ausente.

(...)



Só a tua ausência fica, agora já sem nenhuma espessura, nenhuma possibilidade de nela abrir um caminho, de nela sucumbir de desejo.

(...)




Ontem à noite, depois da tua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês trágico de Junho, esse mês que inaugura o inverno.

Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo limpo de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba.

(...)


E depois comecei a escrever.

(...)






Disse para mim que te teria amado. Pensava que já só me restava de ti uma recordação hesitante, mas não; enganava-me, havia ainda estas praias em volta dos olhos, onde beijar e deitar na areia ainda quente, e esse olhar centrado na morte.

(...)





E depois o sol levantou-se. Um ave atravessou o terraço ao longo da parede da casa. Pensava que a casa estava vazia e chegou tão perto que esbarrou numa rosa, uma daquelas a que eu chamo de Versalhes. Foi brutalmente um movimento, o único do parque abaixo do nível da luz do céu. Ouvi a rosa amarfanhada pela ave no veludo do seu voo. E olhei para a rosa. Primeiro moveu-se, como se estivesse animada de vida, e depois a pouco e pouco voltou a ser uma rosa comum.





Ficaste no estado de teres partido. E fiz um filme da tua ausência.

(...)




Ao mesmo tempo que já não te amo não amo mais nada, só a ti, ainda.

Esta noite chove. Chove em volta da casa e sobre o mar também. O filme vai ficar assim, como está. Não tenho mais imagens para lhe ar. Já não sei onde estamos, em que fim de que amor, em que recomeço de que outro amor, em que história nos perdemos. Sei apenas quanto ao filme. Apenas quanto ao filme, sei, sei que nenhuma imagem mais poderia prolongá-lo.





O dia de hoje não amanheceu e não há o menos sopro no alto das florestas ou nos campos, nos vales. Não se sabe se é o verão ainda ou o fim do verão ou uma estação mentirosa, indecisa, horrível, sem nome.





Já não te amo como no primeiro dia. Já não te amo.




No entanto continuam a existir em volta dos teus olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o olhar e esta existência que te anima no sono.

Continua também esta exaltação que me vem por não saber o que fazer disto, deste conhecimento que tenho dos teus olhos, das imensidades que os teus olhos exploram, por não saber o que escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar da sua insignificância original.

(...)





É assim que permaneces face a mim, na doçura, numa provocação constante, inocente, impenetrável.

E tu não sabes.

(Marguerite Duras, O Homem Atlântico)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Aborrecimentos

Tens preocupações?
Procuras implicar com ela.
Como é que notas?
É evidente, uma rapariga que foge para este género de sítio.
Tu também estás só, não?
É o meu hábito. Gosto de passear sozinho, pode-se mergulhar nos pensamentos. Mas uma rapariga como tu...
Basta! Nem só os homens têm pensamentos.
Nunca disse que tu não os tinhas.
Precisamente, há homens que não têm um pensamento!
Deves ter tido dificuldades.
Cada um tem os seus pensamentos, mas só quando tem dificuldades.
Não queria discutir contigo.
Eu também não.
Espero poder ajudar-te.
Quando precisar.
Não precisar agora?
Não, obrigado. Só preciso de estar sozinha e que ninguém venha incomodar-me.
Isso prova bem que tens aborrecimentos.
Se tu o dizes.
Sofres de melancolia.
É menos grave que isso.
Então reconheces que tens aborrecimentos.
Toda a gente tem aborrecimentos.
Mas tu procuras os aborrecimentos.
Porquê?

(Gao Xingjian, A montanha da alma)