terça-feira, 30 de novembro de 2010

Peach


Would you like to throw a stone at me?
Here, take all that's left of my peach.

Blood-red, deep:
Heaven knows how it came to pass.
Somebody's pound of flesh rendered up.

Wrinkled with secrets
And hard with the intention to keep them.

Why, from silvery peach-bloom,
From that shallow-silvery wine-glass on a short stem
This rolling, dropping, heavy globule?

I am thinking, of course, of the peach before I ate it.

Why so velvety, why so voluptuous heavy?
Why hanging with such inordinate weight?
Why so indented?

Why the groove?
Why the lovely, bivalve roundnesses?
Why the ripple down the sphere?
Why the suggestion of incision?

Why was not my peach round and finished like a billiard ball?
It would have been if man had made it.
Though I've eaten it now.

But it wasn't round and finished like a billiard ball.
And because I say so, you would like to throw something at me.

Here, you can have my peach stone.


(D. H. Lawrence, Birds, beasts and flowers)

Teclado no ecrã

É um mimo. Mais espectacular é impossível.







P.s1.:Volto quando tiver um novo.
P.s2.: Apesar de não conhecer o Brecht (ali do lado direito, o segundo da lista Casas, casinhas, casotas) ,acho que é espectacular. É um mimo lê-lo. E ele desapareceu, portanto, quem o encontrar que me avise.
P.s3.: Gostava de declarar mais coisas ao mundo, mas o teclado no ecrã não deixa.

domingo, 28 de novembro de 2010

|||





Amor, amor, como sempre,
quisera cobrir-te de flores e de insultos.






(Vincenzo Cardarelli, Espera)

sábado, 27 de novembro de 2010

Ophelia

(John Everett Millais, Ophelia, 1851-52)

Ophelia's Death



There is a willow grows aslant a brook,
That shows his hoar leaves in the glassy stream;
There with fantastic garlands did she come
Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples

There, on the pendent boughs her coronet weeds
Clambering to hang, an envious sliver broke;
When down her weedy trophies and herself
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide;
And, mermaid-like, awhile they bore her up 

But long it could not be
Till that her garments, heavy with their drink,
Pull'd the poor wretch from her melodious lay
To muddy death. 

Alas, then she is drown'd, drown'd, drown'd

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mais mon Amour ne me quitte pas


(Les Parapluies de Cherbourg, Jacques Demy,1964)



Mais
Je ne pourrai jamais vivre sans toi
Je ne pourrai pas, ne pars pas, j'en mourrai
Je te cacherai et je te garderai
Mais mon Amour ne me quitte pas






quarta-feira, 24 de novembro de 2010

||



Minha amiga, viver é difícil. Já construí teorias morais de sobra para construir mais ainda, e contraditórias: sou demasiado sensato para acreditar que a felicidade apenas se encontra à beira de um erro, e o vício, tal como a virtude, não pode dar a alegria aos que a não têm em si mesmos. Simplesmente, ainda prefiro o erro (se de erro se trata) a uma denegação de nós próprios tão próxima da demência. A vida fez de mim aquilo que sou, prisioneiro (se quisermos) de instintos que não escolhi, mas aos quais me resigno, e este consentimento, assim o espero, sem me trazer felicidade, há-de proporcionar-me serenidade.


(Marguerite Yourcenar, Alexis)



O meu cérebro ressuscitou, finalmente. Depois de vários dias de quase-narcolepsia, regressei às habituais insónias. Daqui a um mês estarei novamente miserável e ninguém vai reparar. As atenções estão direccionadas para a nova criatura da família. Estou, por assim dizer, livre de todas as tentativas de normalização por parte dos meus progenitores. Já posso ser estranha à vontade. Até já me posso sentir infeliz e realmente parecer infeliz. Miserável, digo. No fundo, é para isso que servem as criaturas recém-nascidas. 


Ando aborrecida, tenho sido uma aluna péssima. O mais chato é que posso ser uma aluna excelente. É só uma questão de não me aborrecer. Como quem diz, assobiar menos.

(Ponto)





terça-feira, 23 de novembro de 2010

Modus tollens

Se ele é sacana, também é indecente
Não é vil.
Logo, só pode ser um sacana indecente.




Argumento muitíssimo válido.


(E foi mais uma interrupção no meu estudo de chinês)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pergunta o super-ego





Do I dare 
Disturb the universe?

|

C'est de naturel des hommes: tant qu'on vit, on se trompe. Hors, il faut bien vivre.



(Milan Kundera, Le Livre du Rire et de L'Oubli)

domingo, 21 de novembro de 2010

Indecência saudável




É de admirar um homem que diz que é vil no sentido mesquinho e infame da vileza. Já os sacanas, aqueles literalmente sacanas, são realmente indecentes. O D. H. Lawrence tem um poema que diz que a indecência pode ser saudável. Nada que se aplique a um sacana indecente nada saudável como ele. 

Sacana/Sakana

Ele é um sacana. Também é um peixe.








(Perceba-se que em japonês sakana é peixe)
(Não tenho mais nada a declarar ao mundo, por agora)


(É isso)

sábado, 20 de novembro de 2010

Acaba lá com isso, ó coração!

Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba lá com isso, ó coração!


(Álvaro de Campos)


O meu coração é comestível como uma fruta. 

E nêsperas também

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


(Mário Henrique-Leiria)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Tangerina




EXPERIMENTAVA viver, quase como um exercício. Tinha seios nas mãos e a cara totalmente transformada em ovo. Palpitava-lhe nas têmporas um amor patético pelo mundo, tão ridículo e imenso que lá caberiam, pouco apertados, os outros amores. E dormia acordado, pelo prazer de esbater fronteiras.

Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofro de inveja de quem tem ternura. Eu já só tenho raiva.

(…)


(Manuel Cintra, Tangerina)



Tenho uma obsessão por Tangerinas desde que descobri a Tangerina do Al Berto em À procura do vento num jardim d'agosto e agora aparece esta outra Tangerina. Uma ternura, como diria o senhor embaixador.
Também gosto de pêssegos, porque acho que os gatos se assemelham aos pêssegos e porque o D. H. Lawrence tem um poema chamado Pêssego que é uma delícia. Gosto de pêssegos porque gosto de gatos. Aliás, acredito mesmo que os pêssegos tenham razões muito profundas, mais profundas que esta minha razão pateta de gostar deles só porque gosto de gatos e poemas.





quinta-feira, 18 de novembro de 2010

What's a question like that?

Lessons In Hunger

"Do you like me?"
I asked the blue blazer.
No answer.
Silence bounced out of his books.
Silence fell off his tongue
and sat between us
and clogged my throat.
It slaughtered my trust.
It tore cigarettes out of my mouth.
We exchanged blind words,
and I did not cry,
and I did not beg,
blackness lunged in my heart,
and something that had been good,
a sort of kindly oxygen,
turned into a gas oven.
Do you like me?
How absurd!
What's a question like that?
What's a silence like that?
And what am I hanging around for,
riddled with what his silence said?

(Anne Sexton)


Idiota

Falo demais, e, no entanto, escrever é estar calada. Precipitei-me nas palavras, dei-lhe as piores quando afinal um sorriso chegava.






Sou uma criatura irracional e incoerente. E também estou relativamente magoada com a sua ausência e, por isso, interpretei mal as suas palavras.



Acho que é hora de parar e respirar. Escrever ou ler não é tão urgente. É tudo, sempre, uma fuga de nada.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cem mil anémonas

E eu não conheço nenhuma. 



Ah, não mais ter a consciência de ser, como uma pedra, como uma planta! Não recordar sequer o nome! Estendidos na erva, com as mãos cruzadas na nuca, olhar no céu azul as nuvens brancas que pairam, deslumbrantes, inchadas de sol; ouvir o vento que soa lá em cima, entre os casntanheiros, do bosque com um fragor de mar. 
Nuvens e vento. 
O que disse? Ai de mim, ai de mim. Nuvens? Vento? E não lhe parece que é tudo, olhar e reconhecer que aquilo que paira no azul interminável e vazio são nuvens? A nuvem sabe porventura que existe? Nem a árvore nem a pedra, que se ignoram até a si mesmas, sabem que a nuvem existe; e estão sós.



(Luigi Pirandello, Um, Ninguém e Cem Mil)


Esta parte lembra-me Caeiro.O resto não. 

Existe sempre o perigo da loucura. Ou de não nos encontrar-mos nunca, porque se o encontro é o início da separação, quando se trata de nós, o desencontro é eterno. E a descoberta nunca se proporciona. 

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Seja como for ele já estava avariado

Sobre o lado esquerdo


De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



(Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo)


Vá-se lá saber como é que isto surgiu assim, tão inesperadamente, e em dois sítios quase ao mesmo tempo. Há um dia de diferença, e o meu vem depois. Não gosto que venha depois. Quanto ao coração, é o que o título diz, está avariado, do lado esquerdo e do lado direito, e pesa tanto como sempre. Pesa em quantidades elevadas de tristeza e de saudade. Porque uma não existe sem a outra. Lembras-te da Menina do Mar? Se não, então lembra-te de mim, da anémona-tangerina-menina, porque eu sei que lá dizia que a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora. Sabes que viver aqui, em Portugal, é viver no Reino da Saudade e da Tristeza. E há pessoas com "quartos da felicidade", imagina uma biblioteca privada, como a do quadro. Isso pode ser um quarto da felicidade. Depois há os outros, para cantar, dançar, sorrir. Quartos escondidos, daqueles que pouca gente tem e quase ninguém conheçe. E quem não os conheçe, ou então se perdeu deles, fica nesta solidão disfarçada de tristeza e saudade. A vida esgota-se e o sono também. É-se louco e triste, não se é belo, e há só um enorme desamor nesta coisa avariada. Que como os gatos, perde vidas, perde-as em suspiros e lágrimas, perde-as para a melancolia. Perde-as para a saudade daquele que nos fere a memória com a sua ausência. Porque o silêncio e o amor são tão mortais como o sofrimento.  

Encontro

Um ser que estuda tem obrigações e, por mais que se desgoste de ouvir o monólogo interior exteriorizado de alguém, nem sempre se desgosta de tudo. E eu gostei de encontrar isto nas minhas leituras inevitáveis.

(Cherry Blossoms in Mint Office at Osaka. Kobe, 20 de Abril de 1910 – Bilhete postal enviado por Wenceslau de Moraes para Maria Joaquina Campos, Lisboa.)


Encontro - o começo da separação.

(...) 
Deve entender-se que o provérbio visa muito especialmente o encontro entre dois indivíduos dos dois sexos, isto é, o encontro amoroso, o amor, que é a paixão no seu estado mais intenso, paixão, a grande força emotiva que electriza uma grande parte da família humana, estonteando-a, cegando-a à razão, ao cumprimento de seus deveres, arrastando-a tantas vezes a todas as ignomínias e finalmente à perdição!... E para quê? Prazeres momentâneos, ilusões passageiras, de mistura com muitas contrariedades, com muitas desilusões, com muitas angústias; caminhando tragicamente para a separação, para a ruptura, seja pela saciedade dos desejos, seja pela fricção de dois temperamentos diferentes e incompatíveis entre si, seja pelos obstáculos que se levantam de surpresa, seja por qualquer de outras mil causas imprevistas... E quando assim não aconteça, quando Ele e Ela gozam o raro privilégio de saberem furtar-se às tempestades da existência, guiando imperturbavelmente a gôndola de seus amores por aprazíveis calmarias, virá um dia a morte, a que ninguém resiste, pôr termo ao idílio, decretar a separação, a ruptura, roubando a um o ente querido... E dirá o sacerdote budista ao crente, que o escuta: - «Queres evitar a separação? Há um meio seguro: evita o encontro.»
E eu direi ao sacerdote budista: - «Bonzo, tu tens razão, sem dúvida. Prega desafogadamente essa doutrina e aumenta a legião dos bem-aventurados. Mas eu rejeito-a para meu uso, tenha embora de sofrer todos os suplícios do inferno do Budismo, os quais sei, por pinturas que por vezes relanceei, serem atrozes. Eu amei, amei muito; e só me pesa não ter amado mais. Eu aprendi a amar, nem tu podes supor como: - quando encontrei um dia, há muito tempo, duas borboletas bailando uma com a outra, beijando-se ao mesmo tempo, sobre as florescências perfumadas de um vegel; - e, em assuntos de amor, eu creio mais nas borboletas do que em Buda.... Vais falar-me, talvez, de separação, de ruptura. Conheço as punhaladas da separação, da ruptura; conheço-as e ainda hoje o coração me sangra delas. Quisera ter dado outro desfecho a estes tristes lances; foi-me impossível. Mas não me lamento, não; mas não me arrependo, não. Amei, sofri, sofro; tudo acabou; tudo não, resta a saudade, que é ainda um dos aspectos fulgurantes do amor. E antes que tu, ó bonzo, ungindo de irónica piedade, venhas sorrir com amargor em face da minha desventura impenitente, quero bradar-te ainda as minhas ultimas palavras sobre este assunto interessante: - tu sabes muitas coisas, certamente; mas ignoras uma pelo menos, O GRANDE PRAZER DO SOFRIMENTO!...

Tokushima, Janeiro de 1920

(Wenceslau de Moraes, Ó-Yoné e Ko-Haru)





domingo, 14 de novembro de 2010

Como é que os loucos podem ter sono!

- Há pessoas, imaginem, que não dormem!
- E porque não dormem?
- Porque nunca têm sono.
- E porque não têm sono?
- Porque são loucos.
- Então os loucos não têm sono?
- Como é que os loucos podem ter sono!


(Franz Kafka, Crianças na estrada nacional)

Can you hear me Major Tom?



Hoje não foi domingo (ponto)

Sou a forma feminina de mau

Sou má pessoa, é verdade. Por muito que quisesse contrariar não consigo, não posso, não me apetece. Também gosto das ditas "boas pessoas", mas só porque me fazem cocegas ao ego e não são nada perversas.

sábado, 13 de novembro de 2010

Le Diable Probablement



Este tipo é bastante lúcido, por sinal. Não me encontrasse eu neste limbo, e seria um animal tão saudável quanto ele. Claro que um individuo que vê de mais acaba sempre incompreendido, é, portanto, uma proeza, sobreviver nesta selva. 

O objecto do universo II

Não é um verdadeiro leitor, um philosophe lisant, aquele que nunca sentiu o fascínio acusador das grandes prateleiras de livros não lidos, das bibliotecas à noite de que Borges é o fabulista. Não é um leitor aquele que nunca ouviu, no seu ouvido mais íntimo, o apelo das centenas de milhares, dos milhões de volumes alinhados nas estantes da British Library ou de Widener, pedindo que os leiam. Pois existe em cada livro um desafio contra o esquecimento, uma aposta contra o silêncio que só pode ser ganha quando o livro for de novo aberto (mas, em contraste com o homem, o livro pode esperar séculos pela sorte da ressurreição).(...) Mas os livros que não abrimos chamam igualmente por nós, num clamor tão silencioso, mas também tão insistente, como o fluir da areia na ampulheta.

(George Steiner, Paixão Intacta)


Recebi um elogio não intencional. De alguém, que na tentativa de aprofundar conhecimentos sobre esta criatura, me tomou por uma coisa que não sou. Não foi um elogio, mas foi a percepção da percepção que o outro tem de mim. Neste caso foi uma espécie de percepção elogiosa. 
Para que conste, não me aproveitei da situação. Até porque hoje estou suficientemente maravilhada com os livros que trouxe da biblioteca. Depois de alguma indecisão, e de subir e descer o escadote à procura do livro (que acabei por não encontrar), cruzei-me com George Steiner no topo da estante, e revi ainda pelo caminho Os Cantos de Pound lido há uns tempos. Lamentei a ausência dos livros que me tinham levado a ir lá, amaldiçoei umas quantas pessoas, entre eles, professores que se apoderam de livros para a eternidade. E peguei, finalmente, no colossal livro de Edgar Allan Poe que reúne todos os contos e que cobiçava desde que foi publicado. Não trouxe nenhum livro de poesia. Talvez para o contrariar, porque ele disse que eu só leio poesia, e disse-o num tom depreciativo. É um individuo que não compreende claramente o apelo dos livros. Ou que nunca se sentiu esmagado pela dimensão da biblioteca e pela certeza da impossibilidade de ler tudo, simplesmente porque não é eterno. Mas, tragicidade à parte, se um individuo ler aquilo que realmente lhe interessa é capaz de ficar minimamente satisfeito. Assim, dando-lhe razão e contrariando-o ao mesmo tempo. Tão paradoxalmente como sempre. Peguei nos dois livros para ressuscitar mais tarde e saí.



Numa coisa concordamos, sou céptica. 

O objecto do universo

(Jean-Baptiste Siméon Chardin, Le philosophe lisant, 1734)

Consideremos em primeiro lugar a maneira de vestir do leitor. É manifestamente formal, até cerimoniosa. A sobreveste e o chapéu guarnecidos de pele sugerem brocado, uma sugestão que é intensificada pelo brilho mate mas áureo do seu colorido.  (...) O que importa é a acentuada elegância, a intenção de estar vestido com distinção naquele momento. O leitor não encontra o livro casualmente nem vestido de qualquer maneira. Está vestido para a ocasião, um procedimento que dirige a nossa atenção para a interpretação de valores e de sensibilidade que incluí tanto a «vestimenta» como o «investimento». O carácter fundamental do acto, da auto-investidura do leitor antes do acto de leitura, é de cortesia, um termo que só de modo imperfeito corresponde a courtesy. Ler, aqui, não é um gesto casual e espontâneo. É um encontro cortês, quase palaciano, entre um particular e um daqueles «convidados ilustres» cuja entrada nas casas dos mortais é evocada por Hölderlin no seu hino «Como num dia festivo» e por Coleridge numa das glosas mais enigmáticas que juntou A Rima do Velho Marinheiro. O leitor encontra-se com o livro com uma nobreza de coração (é esse o significado de cortesia) e com uma nobreza e um desvelo de acolhimento e de hospitalidade de que a manga avermelhada, possivelmente de veludo ou veludilho, e a sobreveste e o gorro guarnecidos de pele são os símbolos exteriores. 


(George Steiner, Paixão Intacta)

Interrogação

Como compreender psicologicamente, socialmente, a capacidade dos seres humanos de interpretarem e serem sensíveis, por exemplo, a Bach ou Schubert, à noite, e de torturarem outros seres humanos na manhã seguinte?



(George Steiner, Errata. An examined life)





O ser humano é perverso.

Pelo menos tu és.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

(sufocar)






Sabes, antes de tu chegares havia muito mais aqui. Agora há só uma indiferença profunda e inflamada dentro do meu peito. E um grito ou uma coisa qualquer, que não rasga nem me deixa respirar.








quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Dilema nocturno #5



No fundo, a Berma seria uma desilusão sem o senhor Norpois. As expectativas eram tais e as impressões tão confusas, que havia uma certa inquietação. Uma inquietação que retirou valor à experiência. E aquilo que deveria ter sido delicioso foi quase desagradável. Felizmente, o senhor Norpois, mil vezes mais inteligente que ele, revelou-lhe a verdade. 



(Preciso de um senhor Norpois, mais inteligente que a minha pessoa e que me faça ignorar menos o mundo. Sim, porque isto é tudo tão delicioso que me faltam todas as verdades.)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cosmic Love



Tenho de admitir que gosto. Sempre tive dificuldade em gostar de coisas que a maioria gosta. Mas na impossibilidade de viver num mundo exclusivo, rendo-me (só um bocado).

Agora, vou ver um episódio do Dartacão gravado com propósitos nostálgicos nocturnos.

E ainda:
O gato precisa do arco-íris. Ninguém é vermelho sempre. E eu sou-o pela pessoa errada.
Também sou má pessoa. Mas isso é para depois.

domingo, 7 de novembro de 2010

Existir de olhos fechados



O perigo da máscara é perdê-la e ficar sem rosto. Há pessoas que não existem sem rosto. E os que existem sem pensar, esses, usam uma só.


E eu existo de olhos fechados porque ainda não sei quem sou.

17 e 56

Ao teu suspiro, que me doeu um instante, e agora lembro num labirinto de palavras.
Seria cansaço ou lamento? Como uma primeira impressão que te escapa ao rosto tapado e que não mente.


São 17 e 56, disse-o baixinho. Olhei-te e repeti em voz alta, são 17 e 56 e só depois percebi que isso não se diz.


Era cansaço e lamento. 

Ainda são 17 e 56.

Um Dia, um Gato

(Az Prijde Kocour, Vojtech Jasný,1963)



Vermelha

Salvar o dia


todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetecia ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me. desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer, que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado, nem me parece que esteja feliz. escrevo com um único fim: salvar o dia.


(Al Berto, O Medo)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

*23

A existência do terrível em cada partícula do ar. Tu respira-lo com a sua transparência: mas ele condensa-se em ti, endurece, assume formas pontiagudas e geométricas entre os orgãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em lugares de suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono: tudo isso é de uma resistente intemporalidade, tudo subsiste e se agarra, ciumento daquilo que é, à sua terrível realidade. As pessoas gostariam de poder esquecer muitas dessas coisas; o seu sono lima suavemente esses sulcos no cérebro, mas os sonhos expulsam-no e sublinham os seus desenhos. E elas acordam, ofegantes, e deixam diluir-se no escuro o brilho de uma vela e bebem como se fosse água açucarada este calmante semiclaro. Mas, ai, em que aresta resiste esta segurança? Basta o menor dos movimentos e já o olhar ultrapassa as coisas conhecidas e amigas, e o contorno ainda agora tão tão consolador precisa-se como uma orla de terror. Abriga-te da luz que torna mais vazio o espaço; não olhes à tua volta para ver se alguma sombra acaso se ergue atrás da tua vigília com teu senhor. Mais teria valido teres permanecido no escuro e o teu coração ilimitado ter tentado ser o coração pesado de tudo o que é indistinto. Agora que todo te recolheste em ti, sentes-te terminar nas tuas mãos, refazes, de tempos a tempos, o contorno do teu rosto com um movimento impreciso. E em ti quase não há espaço; e quase te apazigua o facto de, nesta tua tristeza interior, não ser possível deter-se qualquer coisa muito grande; o facto de mesmo o inaudito ter de se interiorizar e de se adaptar às circunstâncias. Mas lá fora, lá fora tudo é desmedido. E quando lá fora o nível sobe, também em ti ele se eleva, não nos vasos que em parte estão em teu poder, ou no fleuma dos teus orgãos mais impassíveis: eleva-se nos capilares, aspirado para cima em canais até às últimas ramificações da tua existência infinitamete ramificada. Aí se ergue, aí te ultrapassa, alcança mais alto do que a tua respiração, na qual te refugias como num último reduto. Ai, e agora para onde ir, para onde ir? O teu coração expulsa-te de ti mesmo, o teu coração persegue-te, e tu estás quase fora de ti e já não podes regressar. Como um escaravelho que se pisa, assim tu escorres dentro de ti, e a tua pequena parcela de dureza exterior e de adaptação não faz qualquer sentido.

(...)

( Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge)

*

Tenho inveja de indivíduos que nasceram com toda certeza do mundo. Porque isto de me sentir perdida aos 22 anos anos começa a fazer pouco sentido e também não é coisa que os outros compreendam facilmente.

Sim, isto faz sentido.

A minha insónia tem nome: The Dresden Dolls. E a tocar a War Pigs agorinha mesmo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Não, não tem.

O futuro
talvez venha a ter gente assim
feita da substância
da luz; 
o vagaroso futuro; 
o presente não, não tem.


(Eugénio de Andrade, Arte dos versos)






Era bom poder dormir.
                                          Mas a Tangerina não pode. 
                                                                                      Vai ler e tomar um chá.


E tentar não pensar. 

                                Se pensar logo se vê.

Os piqueniques mentais nocturnos são prejudiciais.

                                                                          E as palavras são um perigo.

Futurizar é saber que não vou dormir o necessário para ter o ar de uma pessoa saudável amanha de manhã.

Boas noites.

                                                         

                                                           


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Prelúdio de uma insónia

Ofício de Amar


já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo



(Al Berto)




Sim, isso. Porque tenho a pérola e estou cansada. Tenho esse supremíssimo cansaço seguido de infinitos íssimo.
Não é uma boa noite para sentir.
Não foi um bom dia para te lembrar.
Acho que tinhas demasiadas expectativas, acho.
Acho que morreste pelos teus 16 anos, embriagado em Rimbaud e Eugénio. És adulto, demasiado adulto para sentires. E eu não.


This Is Just To Say



I have eaten
the plums 
that were in 
the icebox 

and which 
you were probably 
saving 
for breakfast 

Forgive me 
they were delicious
so sweet 
and so cold

(W. C. Williams)