quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Dilema nocturno #7

Na parede há um buraco branco, o espelho. É uma ratoeira. Sei que vou lá cair. Já está. A coisa cinzenta acabou de surgir no espelho. Aproximo-me e olho para ela; já não posso desviar-me.
É o reflexo da minha cara. Muitas vezes, nestes dias perdidos fico a contemplá-lo. Não percebo nada desta cara. As dos outros têm um sentido. A minha, não. Nem posso decidir se é bonita ou feia. Acho que é feia, porque mo disseram. Mas não é propriedade que me salte à vista. A bem dizer, até me surpreende que se lhe possam atribuir qualidades desse género, como se se chamasse bonito ou feio a um bocado de terra ou a um bocado de rocha.
(...)
O meu olhar desce lentamente, com enfado, por esta testa, por estas faces: não encontra nada de firme, afoga-se. Evidentemente, aquilo é um nariz, aquilo são uns olhos, aquilo uma boca, mas nada disso tem sentido, nem sequer expressão humana. Todavia, Anny e Vélines achavam que eu tinha um ar de vivacidade; devo estar habituado de mais à minha cara. A minha tia Bigeois dizia-me, quando eu era pequeno: «Se olhares muito tempo para o espelho, acabas por ver um macaco». Olhei muito, muito tempo, com certeza: o que lá vejo está muito abaixo do macaco, na fronteira do mundo vegetal, ao nível dos pólipos. Tem vida, não digo que não; mas não é nessa vida que Anny pensava: noto na imagem do espelho uns leves estremeções, vejo uma carne desenxabida que se distende e palpita com abandono. Os olhos, principalmente, de tão perto, são horríveis. São uma coisa vítrea, mole, cega, orlada de vermelho; parecem escamas de peixe.
Amparo-me, com todo o meu peso, à moldura de faiança, aproximo a minha cara do espelho até lhe tocar. Os olhos, o nariz e a boca desaparecem: já nada resta de humano. Rugas escuras de ambos os lados do inchaço febril dos lábios, gretas, montícudas bochechas; dois pelos saem das narinas: é uma carta geológica em relevo. E, apesar de tudo, este mundo lunar é-me familiar. Não posso dizer que lhe reconheça os pormenores. Mas o conjunto produz-me uma impressão de coisa já vista que me entorpece: resvalo lentamente para o sono.
Tento reagir: uma sensação viva e brusca libertar-me-ia. Espalmo a mão esquerda na face, puxo pela pele; desenha-se no espelho uma careta. Uma metade inteira do meu rosto cede, o lado esquerdo da boca torce-se e incha, destapando um dente, a órbita ensanguentada. Não é o que eu procurava: nada de forte, nada de olhos abertos; já a cara cresce, cresce no espelho, torna-se um imenso halo pálido a boiar na luz....

(Jean-Paul Sartre, A Náusea)


Não necessariamente um dilema. Uma insónia, sim. Um dia perdido como o de hoje merece este livro.

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