domingo, 10 de julho de 2011

A Medula da Alma

Para poder encontrar-me a mim mesmo, tive primeiro de me perder. Tive de chegar ao pleno vazio de mim. Não foi um vazio imóvel, um compasso de espera na dança do ser: o meu vazio foi um rodopiar imparável de dinâmica negativa, de tal forma que desistir surgiu, por fim, como premente solução lógica para acabar de vez com o tormento daquele exercício giratório. Tinha dezanove anos. A minha vida, para todos os efeitos, mal começara. Mas antes mesmo de ter podido pisar-lhe o palco parecia ter chegado já o momento de fechar o pano. A tragédia grega antiga ensina que "o amor não deve atingir a medula da alma". Mas na vida de alguns de nós, de preferência uma única e irrepetível vez, a medula da é alma atingida pelo amor. Felizes os que sobrevivem.
O mais insólito no amor de caixão à cova é a percepção alterada que proporciona de nós mesmos. Se os primeiros dias são de felicidade com a qual nada há que se compare - os ouvidos a zunir, a sensação de que o coração no peito duplicou de tamanho, a visão deslumbrada a dotar tudo o que há de mais corriqueiro de indefiníveis segundos e terceiros sentidos -, chega depois o momento em que nos apercebemos do preço que tivemos de pagar.

(Frederico Lourenço, A formosa pintura do mundo)

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