sábado, 20 de agosto de 2011

Bartleby

Já tenho uma certa idade. A natureza das minhas ocupações, nos últimos trinta anos, pôs-me em contacto estreito com o que seria de considerar uma interessante e algo singular classe de homens, sobre a qual, que eu saiba, nada se escreveu ainda - quero dizer, os escrivães, ou copistas do foro. Conheci muitos deles, quer profissional quer particularmente, e, se me apetecesse, podia contar variadas histórias, acerca das quais os cavalheiros de boa índole ririam, ao passo que as almas sensíveis verteriam lágrimas. Mas eu ponho de lado as biografias de todos os outros, em troca de algumas passagens da vida de Bartleby, que era escrivão, o mais estranho que conheci ou de que ouvi falar. Enquanto de outros copistas do foro, eu poderia escrever a vida completa, acerca de Bartleby tal não é possível. Creio não haver material existente de modo a fazer-se a biografia integral e capaz deste homem. É uma perda irreparável para a literatura. Bartleby era um desses seres acerca dos quais nada se pode concluir a não ser a partir de fontes originais, que, no seu caso, são mínimas. O que os meus próprios olhos, atónitos, viram de Bartleby, isso é tudo quanto sei dele, excepto, na verdade, determinado rumor, que aparecerá em devido tempo. (...)

- Vai ou não deixar-me? - perguntei-lhe então num acesso de súbita fúria, avançando para ele.

- Preferia não o deixar - retorquiu, acentuando delicadamente o não.

- Mas que direito tem o senhor neste mundo de permanecer aqui? Paga a minha renda? Paga os meus impostos? Ou isto é propriedade sua?

Nada respondeu.

- Está pronto para prosseguir, e escrever, agora? Já está bom dos olhos? Pode copiar-me um pequeno documento, esta manhã? Ou ajudar a conferir umas linhas? Ou ir ao Correio? Numa palavra, fará alguma coisa que justifique a sua recusa em partir desta casa?

Retirou-se silenciosamente para o interior do seu ermitério.

Eu estava agora num estado tal de excitação nervosa que julguei ser mais prudente abster-me de momento de mais manifestações. Bartleby e eu estávamos sós. (...)

[Foi então que] agarrei nele e lancei-o fora. Como? Pois simplesmente recordando a injunção divina: «Um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros.» Sim, isto foi o que me salvou. À parte mais elevadas considerações, a caridade opera muitas vezes como princípio imensamente sábio e prudente — uma grande salvaguarda para o seu possuidor. Os homens têm cometido assassínios por causa do ciúme, do ódio, do egoísmo, da soberba; mas nenhum homem cometeu jamais, que eu saiba, um crime diabólico por causa da doce caridade. O simples interesse próprio, então, se melhor motivo se não arranjasse, deveria, especialmente nos homens que facilmente se encolerizam, levar todos os seres à caridade e à filantropia. De qualquer maneira, e no momento em questão, esforcei-me por abafar o meu sentimento de exasperação dirigido contra o escrivão, procurando interpretar com benevolência a sua conduta. Coitado! Coitado! - pensei. - Não faz de propósito; e além do mais, tem passado maus bocados, devemos ser indulgentes para com ele.

E tentei de imediato ocupar-me e ao mesmo tempo compensar o meu desalento. Procurei imaginar que no decurso da manhã, em determinada altura que julgasse conveniente, Bartleby, de sua livre vontade, emergiria do seu ermitério e tomaria a direcção da porta com um passo decidido. Mas não. Veio o meio-dia e meia; o rosto de Turkey começou a brilhar, entornou o tinteiro, tornando-se manifestamente turbulento; Nippers fez-se sossegado e cortês; Ginger Nut foi remoendo a sua maçã do meio-dia; Bartleby permanecia de pé diante da sua janela, num dos seus mais profundos devaneios em frente da parede cega. Seria de crer? Deveria eu admitir tal coisa? Nessa tarde abandonei o escritório sem lhe dizer uma palavra mais.

Passaram-se mais uns dias, durante os quais, quando me era possível, eu dava uma olhadela a On the Will, de Edwards, e On Necessity, de Priestley. Nas circunstâncias presentes, estes livros produziram um resultado salutar. Gradualmente fui-me convencendo de que estes problemas, no que concerne ao escrivão, tinham sido já predestinados de toda a eternidade e que Bartleby me havia sido destinado por qualquer oculto desígnio de uma omnipotente Providência, que não estava nas mãos de um simples mortal como eu perscrutar. Sim, Bartleby, fica aí por detrás do teu biombo, pensei eu; não mais te perseguirei; és tão inofensivo e silencioso como qualquer uma destas velhas cadeiras; numa palavra, nunca me sinto tão à minha vontade como quando sei que aí estás. Finalmente vejo-o e sinto-o, penetro o predestinado fim da minha vida. Estou satisfeito. Outros poderão desempenhar papéis mais sublimes; a minha missão neste mundo, Bartleby, é dar-te espaço no meu escritório durante o período que entendas necessário permanecer.

Acredito que esta sábia e abençoada disposição de espírito me teria acompanhado, não tivessem sido os comentários inoportunos e pouco caridosos que me eram lançados pelos colegas que me visitavam. Mas assim frequentemente acontece que a constante fricção com espíritos nada liberais vem a minar inevitavelmente as melhores disposições dos mais generosos. Pensando bem, na verdade, não era realmente de estranhar que as pessoas que entravam no escritório ficassem impressionadas com o singular aspecto do inacreditável Bartleby, e fossem por isso tentadas a lançar qualquer sinistra observação a seu respeito. Em certas alturas, um solicitador, que tinha coisas a tratar comigo, vinha ao meu escritório, e, não encontrando lá ninguém a não ser o escrivão, tentava obter deste alguma informação precisa sobre o local onde eu estaria; mas sem prestar nenhuma atenção a tal palavreado, Bartleby permanecia de pé, imóvel, no meio da sala. E era assim que, depois de o ter observado durante um bocado, o solicitador se ia embora a saber o mesmo.

Igualmente quando havia uma inquirição, o quarto cheio de advogados e testemunhas, e o negócio a todo o vapor, um dos cavalheiros da profissão presentes, muito ocupado, e vendo Bartleby sem fazer nada, instava-o a que fosse ao seu escritório buscar-lhe uns papéis. Logo Bartleby se recusava tranquilamente, permanecendo no entanto tão desocupado como anteriormente. O advogado, então, olhava-o assombrado, e voltava-se para mim. E que podia eu dizer? Por fim apercebi-me de que no círculo das minhas relações profissionais corria um murmúrio de espanto, devido à estranha criatura que eu albergava no meu escritório. Isto muito me aborrecia. E como me ocorresse a possibilidade de ele ser pessoa para viver muitos anos, continuando a ocupar os meus aposentos, negando a minha autoridade; causando perplexidade nos visitantes; difamando a minha reputação profissional; lançando uma soturnidade geral sobre o local de trabalho; mantendo-se firmemente, sem gastar nada que fosse das suas economias (visto que ele não gastava mais de meio cêntimo por dia), e talvez que, por fim, sobrevivendo-me, reivindicasse a posse do meu escritório devido à sua ocupação perpétua dele. Como todas estas sombrias antecipações se acumulassem mais e mais na minha mente, e os meus amigos continuassem a manifestar incansavelmente a sua opinião acerca daquela aparição nos meus aposentos, operou-se em mim uma grande mudança. (...)

Agindo em conformidade, dirigi-me a ele no dia seguinte nestes termos: - Acho este local demasiado longe da Câmara Municipal: os ares aqui são pouco saudáveis. Numa palavra, proponho-me mudar de local na próxima semana, e não precisarei mais dos seus serviços. Digo-lhe isto agora, para que possa procurar outro lugar.

Ele não respondeu, e ficámos por aqui.

No dia determinado contratei carroças e homens, dirigi-me aos meus escritórios e, tendo pouca mobília, a mudança fez-se em poucas horas. Durante todo o tempo, o escrivão permaneceu de pé atrás do biombo, tendo eu dado ordens para que fosse a última coisa a ser retirada. Retiraram-no dobrado como se fosse um enorme fólio, e lá ficou Bartleby, ocupante imóvel de uma sala nua. Fiquei à entrada da porta a observá-lo um momento, enquanto intimamente algo me censurava.

Voltei a entrar, com a mão no bolso - e... e o coração na boca.

- Adeus, Bartleby; vou-me embora. Adeus, e que Deus o guarde; tome lá isto - e passei-lhe sub-repticiamente qualquer coisa para a mão. Mas logo caiu ao chão; e então, por estranho que pareça, foi a custo que me separei dele, de quem eu tanto ansiava desembaraçar-me. (...)

(Herman Melville, Bartleby)



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