sábado, 13 de novembro de 2010

O objecto do universo

(Jean-Baptiste Siméon Chardin, Le philosophe lisant, 1734)

Consideremos em primeiro lugar a maneira de vestir do leitor. É manifestamente formal, até cerimoniosa. A sobreveste e o chapéu guarnecidos de pele sugerem brocado, uma sugestão que é intensificada pelo brilho mate mas áureo do seu colorido.  (...) O que importa é a acentuada elegância, a intenção de estar vestido com distinção naquele momento. O leitor não encontra o livro casualmente nem vestido de qualquer maneira. Está vestido para a ocasião, um procedimento que dirige a nossa atenção para a interpretação de valores e de sensibilidade que incluí tanto a «vestimenta» como o «investimento». O carácter fundamental do acto, da auto-investidura do leitor antes do acto de leitura, é de cortesia, um termo que só de modo imperfeito corresponde a courtesy. Ler, aqui, não é um gesto casual e espontâneo. É um encontro cortês, quase palaciano, entre um particular e um daqueles «convidados ilustres» cuja entrada nas casas dos mortais é evocada por Hölderlin no seu hino «Como num dia festivo» e por Coleridge numa das glosas mais enigmáticas que juntou A Rima do Velho Marinheiro. O leitor encontra-se com o livro com uma nobreza de coração (é esse o significado de cortesia) e com uma nobreza e um desvelo de acolhimento e de hospitalidade de que a manga avermelhada, possivelmente de veludo ou veludilho, e a sobreveste e o gorro guarnecidos de pele são os símbolos exteriores. 


(George Steiner, Paixão Intacta)

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