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sábado, 13 de novembro de 2010

O objecto do universo II

Não é um verdadeiro leitor, um philosophe lisant, aquele que nunca sentiu o fascínio acusador das grandes prateleiras de livros não lidos, das bibliotecas à noite de que Borges é o fabulista. Não é um leitor aquele que nunca ouviu, no seu ouvido mais íntimo, o apelo das centenas de milhares, dos milhões de volumes alinhados nas estantes da British Library ou de Widener, pedindo que os leiam. Pois existe em cada livro um desafio contra o esquecimento, uma aposta contra o silêncio que só pode ser ganha quando o livro for de novo aberto (mas, em contraste com o homem, o livro pode esperar séculos pela sorte da ressurreição).(...) Mas os livros que não abrimos chamam igualmente por nós, num clamor tão silencioso, mas também tão insistente, como o fluir da areia na ampulheta.

(George Steiner, Paixão Intacta)


Recebi um elogio não intencional. De alguém, que na tentativa de aprofundar conhecimentos sobre esta criatura, me tomou por uma coisa que não sou. Não foi um elogio, mas foi a percepção da percepção que o outro tem de mim. Neste caso foi uma espécie de percepção elogiosa. 
Para que conste, não me aproveitei da situação. Até porque hoje estou suficientemente maravilhada com os livros que trouxe da biblioteca. Depois de alguma indecisão, e de subir e descer o escadote à procura do livro (que acabei por não encontrar), cruzei-me com George Steiner no topo da estante, e revi ainda pelo caminho Os Cantos de Pound lido há uns tempos. Lamentei a ausência dos livros que me tinham levado a ir lá, amaldiçoei umas quantas pessoas, entre eles, professores que se apoderam de livros para a eternidade. E peguei, finalmente, no colossal livro de Edgar Allan Poe que reúne todos os contos e que cobiçava desde que foi publicado. Não trouxe nenhum livro de poesia. Talvez para o contrariar, porque ele disse que eu só leio poesia, e disse-o num tom depreciativo. É um individuo que não compreende claramente o apelo dos livros. Ou que nunca se sentiu esmagado pela dimensão da biblioteca e pela certeza da impossibilidade de ler tudo, simplesmente porque não é eterno. Mas, tragicidade à parte, se um individuo ler aquilo que realmente lhe interessa é capaz de ficar minimamente satisfeito. Assim, dando-lhe razão e contrariando-o ao mesmo tempo. Tão paradoxalmente como sempre. Peguei nos dois livros para ressuscitar mais tarde e saí.



Numa coisa concordamos, sou céptica. 

O objecto do universo

(Jean-Baptiste Siméon Chardin, Le philosophe lisant, 1734)

Consideremos em primeiro lugar a maneira de vestir do leitor. É manifestamente formal, até cerimoniosa. A sobreveste e o chapéu guarnecidos de pele sugerem brocado, uma sugestão que é intensificada pelo brilho mate mas áureo do seu colorido.  (...) O que importa é a acentuada elegância, a intenção de estar vestido com distinção naquele momento. O leitor não encontra o livro casualmente nem vestido de qualquer maneira. Está vestido para a ocasião, um procedimento que dirige a nossa atenção para a interpretação de valores e de sensibilidade que incluí tanto a «vestimenta» como o «investimento». O carácter fundamental do acto, da auto-investidura do leitor antes do acto de leitura, é de cortesia, um termo que só de modo imperfeito corresponde a courtesy. Ler, aqui, não é um gesto casual e espontâneo. É um encontro cortês, quase palaciano, entre um particular e um daqueles «convidados ilustres» cuja entrada nas casas dos mortais é evocada por Hölderlin no seu hino «Como num dia festivo» e por Coleridge numa das glosas mais enigmáticas que juntou A Rima do Velho Marinheiro. O leitor encontra-se com o livro com uma nobreza de coração (é esse o significado de cortesia) e com uma nobreza e um desvelo de acolhimento e de hospitalidade de que a manga avermelhada, possivelmente de veludo ou veludilho, e a sobreveste e o gorro guarnecidos de pele são os símbolos exteriores. 


(George Steiner, Paixão Intacta)

Interrogação

Como compreender psicologicamente, socialmente, a capacidade dos seres humanos de interpretarem e serem sensíveis, por exemplo, a Bach ou Schubert, à noite, e de torturarem outros seres humanos na manhã seguinte?



(George Steiner, Errata. An examined life)





O ser humano é perverso.

Pelo menos tu és.