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domingo, 6 de março de 2011
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
O fazedor
Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e víviddas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão , a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavras fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e se tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou ( já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo da chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho.
A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando de feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que de momento procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar.
Outra lembrança. em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperava por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através das galerias que eram como redes de pedra e através de despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra.
(Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos, Ruy Belo (trad.))
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
Arte poética
Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Que nos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver só na morte o sono, o ocaso
Um triste outro, assim é a poesia
Que imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
(Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos, Ruy Belo (trad.))
No meio deste livro está este mesmo poema escrito à mão - por Ruy Belo. É uma pena não o poder mostrar.
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Que nos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver só na morte o sono, o ocaso
Um triste outro, assim é a poesia
Que imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
(Jorge Luis Borges, Poemas Escolhidos, Ruy Belo (trad.))
No meio deste livro está este mesmo poema escrito à mão - por Ruy Belo. É uma pena não o poder mostrar.
sábado, 1 de janeiro de 2011
A kind of maze
INTERVIEWER
Readers very often call your stories parables. Do you like that description?
BORGES
No, no. They're not meant to be parables. I mean if they are parables . . . [long pause] . . . that is, if they are parables, they have happened to be parables, but my intention has never been to write parables.
INTERVIEWER
Not like Kafka's parables, then?
BORGES
In the case of Kafka, we know very little. We only know that he was very dissatisfied with his own work. Of course, when he told his friend Max Brod that he wanted his manuscripts to be burned, as Virgil did, I suppose he knew that his friend wouldn't do that. If a man wants to destroy his own work, he throws it into a fire, and there it goes. When he tells a close friend of his, “I want all the manuscripts to be destroyed,” he knows that the friend will never do that, and the friend knows that he knows and that he knows that the other knows that he knows and so on and so forth.
INTERVIEWER
It's all very Jamesian.
BORGES
Yes, of course. I think that the whole world of Kafka is to be found in a far more complex way in the stories of Henry James. I think that they both thought of the world as being at the same time complex and meaningless.
INTERVIEWER
Meaningless?
BORGES
Don't you think so?
INTERVIEWER
No, I don't really think so. In the case of James . . .
BORGES
But in the case of James, yes. In the case of James, yes. I don't think he thought the world had any moral purpose. I think he disbelieved in God. In fact, I think there's a letter written to his brother, the psychologist William James, wherein he says that the world is a diamond museum, let's say a collection of oddities, no? I suppose he meant that. Now in the case of Kafka, I think Kafka was looking for something.
INTERVIEWER
For some meaning?
BORGES
For some meaning, yes; and not finding it, perhaps. But I think that they both lived in a kind of maze, no?
(o resto aqui)
Aconselha-se a entrevista de Huxley, também - e as outras todinhas, que isto é uma perdição.
Lenços e mais lenços.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Possibilidades de felicidade
Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a comprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.
(Jorge Luís Borges, Borges Oral)
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Entre(vista)
Disse uma vez que um escritor nunca devia ser julgado pelas suas ideias.
- Sim, não me parece que as ideias sejam importantes.
Muito bem, então de que modo devia ele ser julgado?
- Devia ser julgado pela satisfação que proporciona e pelas emoções que se obtêm. Quanto às ideias, bem vistas as coisas não é muito importante se um escritor tem uma determinada opinião política ou se tem outra, porque a obra há-de surgir independentemente delas, como no caso do Kim, de Kipling. Suponha que considera a ideia do império inglês - bem, em Kim parece-me que as personagens de que realmente gostamos não são inglesas, mas muitas delas índios ou muçulmanos. Acho que são boa gente. E isso acontece porque ele as pensou - não, não! Não porque ela as pensou mais simpáticas - porque ele as sentiu mais simpáticas.
(Excerto da entrevista a Jorge Luís Borges, Entrevistas da Paris Review)
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