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quinta-feira, 21 de abril de 2011

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Como podeis entender-me? Eu falo de tão longe...

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Boca que decidíeis se isto seria himeneu ou luto, veneno ou poção medicinal, beleza ou doença, que aconteceu ao rancor e à sua aurora, a doçura?
Cabeça hedionda que se exaspera e se corrompe!


(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Viver com semelhantes homens



Tenho tanta fome, durmo sob a canícula das provas. Viajei até à exaustão, a fronte sob o enxugadouro nodoso. Para que o mal jamais se reacenda, sufoquei os seus compromissos. Apaguei o seu emblema da inépcia da minha roda de proa. Retorqui às pancadas. Matava-se de tão perto que o mundo se quis melhor. Brumário da minha alma jamais escalada, quem abre fogo no curral deserto? Já não é a vontade elíptica da escrupulosa solidão. Dupla asa dos gritos de um milhão de crimes erguendo-se repentinamente aos olhos outrora negligentes, mostrai-nos os vossos desígnios e essa vasta abdicação do remorso!

Mostra-te; nós nunca nos sentíamos satisfeitos com o sublime bem-estar das andorinhas muito magras. Ávidos de se aproximarem do amplo alívio. Incertos no tempo que o amor aumentava. Incertos, só eles, no cume do coração.
Tenho tanta fome.

(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))

Elementos

À memória de Roger Bonon,
morto em Maio de 1940 (mar do Norte)

Essa mulher à margem da afluência da rua segurava o filho nos braços como um vulcão meio extinto segura a sua cratera. As palavras que ela lhe confiava percorriam lentamente a sua cabeça antes de perfurarem a letargia da sua boca. Daqueles dois seres, sendo que um pouco menos pesava do que o casulo de uma estrela, emanava um obscuro esgotamento que em breve haveria de relaxar-se e deslizar na dissolução desse precoce final dos miseráveis. 
Rente ao chão, a noite insinuava-se ligeira na carne titubeante de amos. A seus olhos, os mundos já não se afrontavam, se é que alguma vez o tinham feito.
Nessa mulher ainda jovem devia um homem enraizar-se, mas este permanecia invisível como se o horror, não podendo mais, aí se tivesse quedado.
O ardor egoísta, privilégio dos idiotas e dos tiranos, passeando-se constantemente pelas mesmas zonas iluminadas do seu bairro, é um apostema; a vulnerabilidade que ousa descobrir-se envolve-nos intimamente.
Vislumbro o dia em que alguns homens, que não se julgarão generosos e absolvidos, visto que terão conseguido expulsar o desânimo e a submissão ao mal do trato com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que terão atacado e dominado as forças de chantagem que de todas as partes os reclamavam, vislumbro o dia em que alguns homens empreenderão sem astúcia a viagem da energia do universo. E, como a fragilidade e a inquietude de alimentam de poesia, será exigido no regresso a esses altos viajantes que se dignem lembrar-se.


(René Char, Furor e Mistério, Margarida Vale de Gato (trad.))