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sábado, 12 de novembro de 2011

Lettera amorosa



Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

(Eugénio de Andrade, Lettera Amorosa)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

À beira da água

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

(Eugénio de Andrade, "À beira da água", in JL, Foz do Douro (27. 8. 2000))

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A imagem do poeta morto |

(desenho feito por Teixeira de Pascoaes)

Teixeira de Pascoaes, «desiludido, quase esquelético», como ele dizia, e quase esquecido, acrescento eu, morreu na noite de 14 de Dezembro de 1952, e tão serenamente que a família que o rodeava esperou ainda que ele voltasse a respirar. Mas não. O «pobre Joaquim» estava morto. Entrou na morte com a mesma simplicidade com que entrava em casa. A partir daquela noite era ao calor de um outro sol que aquecia as mãos e a melancolia. 
A sua morte era esperada. Sobretudo a esperavam aquela meia-dúzia de amigos que o viram sair, cerca de quinze dias antes, de uma casa de saúde do Porto, para entrar na ambulância que o levaria à Casa de Pascoaes. A São João de Gatão, como ele gostava de dizer. Era já uma sombra do que fora, os olhos apagados mal se abriam, as mãos quase não podiam com o gesto, e até algumas pessoas de família deixara de reconhecer. O fim chegara, embora o corpo permanecesse ainda vivo. Durante os cinco dias que ali estive, o delírio e o torpor foram o seu pão e o seu vinho. Contudo, ao chegar a casa ainda a reconheceu, e alegrou-se. Mas vinha ferido de morte. E a morte veio sem que ele desse por isso. Com tudo o mais que se seguiu já Pascoaes nada teria a ver. Nem ele, nem eu.
Queria despegar de mim a imagem do poeta morto. Não é esse o meu Pascoaes. O Pascoaes que eu conheci, já velho, é certo, era magnífico e luminoso: espontâneo e simples com as crianças, mas também terrível e acusador como um profeta do Velho Testamento. A sua presença era inquieta e feliz, não deixando nada em sossego, em nome da verdade. A mentira era para ele o maior dos pecados.
- Eu devo ter-me enganado muitas vezes, mas nunca menti - disse-me ele no nosso primeiro encontro. Já lá vão uns anos. Pascoaes viera esperar-nos ao caminho. Com um abraço, porque ele abraçava toda a gente. Mostrava o seu Marão, cintava como lá descobrira aquele anel de ferro que trazia no dedo (e levaria para a morte), lamentava que não houvesse neve. (Estava um dia de primavera naquele inverno, lembras-te, Ernesto? Lembras-te, Eduardo?)
Eu olhava-o deslumbrado. No primeiro momento Pascoes pareceu-me velho, muito mais velho do que eu imaginara. Nunca o vira antes e apenas o conhecia de antigos retratos. Mas essa impressão desfez-se logo: ele era vida prodigiosa, ímpeto, espaço aberto. Sobretudo diante do Marão.
- Os poetas - dizia - precisavam todos de uma casa assim. É verdade!, veja lá a sorte que eu tive em nascer numa casa destas!

(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940*1980])

sábado, 2 de julho de 2011

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1980])

És o cancro secreto.

Amor extinto.

Hoje.

Prolongado na dor.

Não quebraste o silêncio. Não quebraste. Não quebrei.

No fim, no fim dá-lhe este poema. Queda-se em silêncio, sentada no chão. E lamenta, lamenta a perda.

domingo, 19 de junho de 2011

Este «bárbaro»

D. H. Lawrence, numa página fulgurante da sua Correspondência - que, apesar de escrita há mais de cinquenta anos, a hipocrisia britânica, bem mais que o seu império, ainda não conseguiu engolir - fatigado de tanto discurso sobre a virtude dos intelectuais, máscara não poucas vezes utilizada como disfarce de uma trágica incapacidade de amar, exaltou dionisicamente a inteligência da carne.
(...)


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1980])

Corpo adormecido

Terra: se um dia lhe tocares
o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio,
e sê leve para quem o foi contigo.


Dá-lhe o meu cabelo para sonho,
e deixa as minhas mãos para tecer
a mágoa infinita das raízes
que um dia no seu corpo hão-de beber.


(Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos)

sábado, 4 de junho de 2011

XV

Caem os sonhos um a um
e o sangue estremece.
Caem, e ficam no chão
de quem os morde e esqueçe.





(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))


Ilusão.

Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam surdas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))

42.

Vê como se morre devagar
neste inverno
que se aproxima da cintura;

como a chuva entra pelo sono
e a sombra mais amarga
se vai juntando à terra nua;

ou a fria chama de cal
tarda.


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre a palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente


(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1980))

A boca sobre a boca nevava

Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.

Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com nácar da língua.

Só um grito desde o chão
pode fulminá-la.

A morte
não é um segredo
não é em nós um jardim de areia.

De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.

Vou ensinar-te como se reconhece
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.

A boca sobre a boca nevava.

(Eugénio de Andrade, Deixa a mão)

Amanhã é o precipício. 
O medo anuncia
as lágrimas.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

As palavras mordendo a solidão


Estás só, e é de noite, 
na cidade aberta ao vento leste
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

(...)

lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar, 

(..)

Estás só.
Desolado e só
E é de noite.

(Eugénio de Andrade, Um rio que te espera)



As palavras são um perigo. Os poemas são um perigo. Ele gosta(va) de Eugénio, eu gosto de Eugénio. Estou com medo de amanhã e de hoje. Hoje não soube a Domingo e os outros dias souberam a nada. 





Espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.



(Eugénio de Andrade)



quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Haverá outro nome para o lugar onde não há lembranças de ti?



Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembranças de ti?

(Eugénio de Andrade, O outro nome da terra)


Escrevo: escrevo-te. Penso: penso-te. Leio: leio-te. Este poema sabe tanto a ti e à tua ausência. Hoje dóis-me. 

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Não, não tem.

O futuro
talvez venha a ter gente assim
feita da substância
da luz; 
o vagaroso futuro; 
o presente não, não tem.


(Eugénio de Andrade, Arte dos versos)






Era bom poder dormir.
                                          Mas a Tangerina não pode. 
                                                                                      Vai ler e tomar um chá.


E tentar não pensar. 

                                Se pensar logo se vê.

Os piqueniques mentais nocturnos são prejudiciais.

                                                                          E as palavras são um perigo.

Futurizar é saber que não vou dormir o necessário para ter o ar de uma pessoa saudável amanha de manhã.

Boas noites.