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sexta-feira, 22 de abril de 2011

até que por fim
fim de um longo dia
ela desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
a da sua mãe
aquela onde a sua mãe sentada
ao longo do ano
toda vestida de negro
se foi embalando
embalando
até ao seu fim
o seu fim enfim
ausente dizia-se
um pouco ausente
mas inofensiva
morta um dia
não
uma noite
morta uma noite
fim de um longo dia
na sua cadeira de baloiço
com o seu melhor vestido negro
cabeça caída
a cadeira de baloiço
a embalá-la
embalá-la para sempre até que por fim
ao fim de um longo dia
desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
finalmente esses braços
e se embalou
embalou
os olhos fechados
fechando-se
tanto tempo
olhos
olhos ávidos
em todo o lado
em cima em baixo
aqui e ali
à sua janela
para ver
ser vista
até finalmente ao dia
fim de um longo dia
em que ela diz para si
a quem mais
tem de parar
baixa o estore e pára
tempo de descer
a escada íngreme
tudo desceu
seja ela a outra
a outra alma viva
só ela
até que por fim
ao fim de um longo dia
desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
tudo desceu
sentar-se na velha cadeira de baloiço
e embalou-se
embalou-se
dizendo
não
nunca mais
à cadeira
braços finalmente
dizendo
embala-a daqui
que se lixe a vida
embala-a daqui
embala-a daqui

Tempo de parar

Até finalmente ao dia.
Fim de um longo dia
em que ela disse
disse para si
a quem mais
tempo de parar
tempo de parar
para de andar
aqui e ali
olhos
em todo o lado
em cima em baixo
à procura de um outro
um outro como ela
um outro ser como ela
um pouco como ela
errante como ela
aqui e ali
olhos
em todo o lado
em cima e em baixo
à procura de um outro
até finalmente ao dia
fim de um longo dia
em que ela disse para si
a quem mais
tempo de parar
tempo de parar
parar de andar
aqui e ali

(...)

A eterna confusão de C



a chuva e a eterna confusão a tentares inventar daquela maneira à medida que avançavas como é que podia funcionar dessa maneira para variar nunca teres existido o que é que podia dar nunca teres existido a eterna confusão a tentares confundir o ser com a coisa titubeando murmurando pelos cantos da paróquia até a língua te secar e a cabeça secar e as pernas secarem fossem de quem fossem ou a coisa renunciar fosse ela o que fosse

B

nunca um olhar para a cara dela nem para mais parte nenhuma nunca um gesto para ela nem dela para ti sempre paralelos como nas duas pontas dum eixo nunca um virado para o outro só duas manchas vagas nos limites do campo sem nunca se tocarem nem nada desse género sempre espaço entre vocês nem que fosse um centímetro nada de toques de tipo carne e osso nada mais nada menos meras sombras não fossem os juramentos

C



quando tu começaste a não saber quem eras desde Adão e Eva a tentar ver o que é que dava para variar não saber quem eras desde Adão e Eva sem noção de quem estava a dizer o que tu dizias de quem era o crânio em que estavas fechado de quem eram as misérias que te tinham tornado assim foi essa vez ou essa foi outra vez ali sozinho com os retratos dos mortos negros de velhos e da porcaria e as datas nas molduras para não haver engano de séculos sem acreditarem que eras tu até te porem para fora à chuva à hora de fechar


(Samuel Beckett, Aquela vez e outros textos, Luís Miguel Cintra e Diogo Dória (trad.))

terça-feira, 15 de março de 2011

V

Eu ando a rondar por aqui... agora. (Um tempo.) Ou antes chego e pespego-me. ( Um tempo.) Ao cair da noite. (Um tempo.) Ela julga-se só. (Um tempo.) Vejam como fica imóvel, de cara para a parede. Aquela fixação! Aquela impassibilidade aparente! (Um tempo.) Ela não voltou a sair desde a juventude. (Um tempo.) Não voltou a sair desde a juventude! (Um tempo.) Onde está ela, podemos perguntar. (Um tempo.) Mas na velha casa, a mesma onde ela começou. (Um tempo.) Onde isso começou. (Um tempo.) Isso tudo começou. (Um tempo.) Mas isto, quando começou isto? (Um tempo.) No tempo em que as outras raparigas da sua idade andavam lá fora, a jogar à...aquele jogo do céu e do inferno, já ela estava aqui. Já começava nisto. (Um tempo.)  O chão neste sítio, agora raso, dantes era ( E avança. Passos um pouco mais lentos. Quatro percursos. Com o primeiro percurso.) Mas admiremos a sua postura silenciosa. (Fim do primeiro percurso.) Que elegância na meia volta! (Com o terceiro percurso, síncrono com os passos.) Sete oito nove e up! (E pára de frente à direita.) Dizia eu que o chão neste sítio, agora raso, antes esteve sob um tapete, um tapete espesso. Até ao dia em que, ou antes à noite, até à noite em que, mal saída da infância, chamou a mãe e disse-lhe, mãe, isto não chega. A mãe: não chega? Ema, seu nome de baptismo - Ema: não chega. A mãe: O que queres dizer, Ema, não chega, vejamos, o que podes queres dizer, Ema, não chega? Ema: Quero dizer, mãe, que falta o bater dos passos, por mais fraco que seja. A mãe: O movimento só não chega? Ema: Não mãe, o movimento só por si não chega, falta-me o bater dos passos por mais fraco que seja. (Um tempo. E avança. Seis percursos. Com o segundo percurso.) Será que dorme, perguntar-se-á. (Com o terceiro percurso.) Sim, noites há em que dormita um pouco, encosta a cabecinha na parede e dormita. (Com o quarto percurso.) Ainda fala? Sim, noites há, quando julga que ninguém a ouve. (Com o quinto percurso.) Conta como foi, tenta contar como foi. Isso tudo. (Inínicio do sexto percurso.) Isso tudo. 

(Samuel Beckett, Aquela Vez e Outros Textos, Luís Miguel Cintra e Diogo Dória (trad.))




V
(Com o terceiro percurso.)
Nunca vais parar?
(Com o quarto percurso.)
Nunca vais parar de remexer isso tudo?

E
(Pára de frente à esquerda.)
Isso?

V
Isso tudo. (Um tempo) Na tua cabecinha. (Um tempo.) Isso tudo. (Um tempo.) Isso tudo. (Um tempo. E recomeça a andar...)



(Samuel Beckett, Aquela Vez e Outros Textos, Luís Miguel Cintra e Diogo Dória (trad.))

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Profético e com voluptuosidade



HAMM - Em minha casa. (Pausa. Profético e com voluptuosidade.) Um dia vais ficar cego. Como eu. Ficarás sentado em qualquer parte, pequena plenitude perdida no vácuo, para sempre, na obscuridade. Como eu. (Pausa.) Um dia pensarás: Estou cansado, vou sentar-me, e vais sentar-te. Depois pensarás: Tenho fome, vou pôr-me de pé e fazer qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé. Pensas: Fiz mal em sentar-me, mas como me sentei, vou ficar sentado ainda um bocado, depois ponho-me de pé e faço qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé e não fazes nada para comer. (Pausa.) Olhas durante um bocado para a parede e depois dizes: Vou fechar os olhos, vou talvez dormir um pouco, depois tudo vai correr melhor, e vais fechá-los. E quando os voltares a abrir já não haverá parede. (Pausa.) O infinito do vácuo rodear-te-á, todos os mortos de todos os tempos ressuscitados não o encherão, e tu serás como uma pequena pedra no meio da estepe. (Pausa.) Sim, um dia saberás o que é isto, serás como eu, excepto que tu não terás ninguém, porque não terás tido piedade de ninguém e já não haverá ninguém de quem ter piedade.

Pausa.


CLOV - Isto não está dito. (Pausa.) E depois esqueceste de uma coisa.

HAMM -  Ah.

CLOV - Não posso sentar-me.

HAMM (impaciente) - Pois bem, deitar-te-ás, não tem importância. Ou simplesmente vais parar, ficarás de pé como agora. Um dia pensarás: Estou cansado, vou parar. Que importa a posição?

Pausa.


(Samuel Beckett, Fim de Partida)