sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Quant à moi


 Desenganem-se, esta música é pura alegria para mim. O mais provável é isto ser um dilema nocturno.

Miseravelmente apática

Reparai bem, a intenção era escrever sobre este ano, mas foi um ano de merda (perdoai-me) e não há nada que me apeteça dizer sobre ele. Um Bof era capaz de definir bem as coisas, mas não, nem o bof mais vão de todos me satisfaz. A situação agrava-se quando o meu lado voyeurzinho decide vasculhar o facebook alheio (sim, que é para isso que ele serve) e é então que dou com uma daquelas notas de uma pseudo-amiga. A dita nota era sobre 2010, o balanço era mais ou menos posítivo. Ora, esta tipa que mal conheço não teve um ano nada  miserável. Fiquei a saber que tirou a carta, começou a usar saltos e as mamas ainda lhe crescem. Mas isto interessa? Pois claro que sim, vamos lá agudizar a miserabilidade da minha pessoa. Esta criatura é provavelmente uns quatro anos mais nova que eu. Eu que ainda não tirei a carta, que não uso saltos e que coitadita sou pobre nesses atributos femininos. Não que isto me desperte qualquer tipo de interesse, mas, vá, são coisas que alguém mais novo que eu fez. É claro que são coisitas que eu consigo, mas um individuo miserávelmente apático nem isso faz. Percebi, então, que  começo a ficar velha e que esta tipa me incomoda realmente. Incomoda-me porque não é discreta, porque não é triste e não leu nenhum livro. Além de má voyeur, sou invejosa e admiro secretamente gente miserável. Faço coisas contra a minha vontade, o que me torna num monstrinho adulto. Adulta, é isso. Sou desprezível.  Ainda sou só meia-adulta, mais velha que adulta. Passei o ano a lutar contra mim e a fugir de nada e 2010 não só foi uma merda, como 2011 me é perfeitamente indiferente. É tudo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Again she falls, again she dies, she dies!

(Jean Cocteau, Orphée,1949)



But soon, too soon the lover turns his eyes;
Again she falls, again she dies, she dies!
How wilt thou now the fatal sisters move?
No crime was thine, if 'tis no crime to love.
Now under hanging mountains,
Beside the falls of fountains,
Or where Hebrus wanders,
Rolling in Meanders,
All alone,
Unheard, unknown,
He makes his moan;
And calls her ghost,
Forever, ever, ever lost!
Now with furies surrounded,
Despairing, confounded,
He trembles, he glows,
Amidst Rhodope's snows.
See, wild as the winds o'er the desert he flies;
Hark! Haemus resounds with the Bacchanals cries -
-Ah, see, he dies!
Yet even in death Eurydice he sung,
Eurydice still trembled on his tongue;
Eurydice the woods,
Eurydice the floods,
Eurydice the rocks, and hollow mountains rung.

(Alexander Pope, Ode for Musick, que se encontra aqui )


Eu a lembrar-me de ti, de Lira e Vega. E da possibilidade de infelicidade e solidão.

Possibilidades de felicidade

Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a comprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.


(Jorge Luís Borges, Borges Oral)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sophia


Belíssimo documentário de João César Monteiro sobre Sophia de Mello Breyner Andresen.

Deus verme



Se fores capaz de ser um verme, serás também capaz de ser um Deus.






(Henry Miller, O Tempo dos Assassinos





segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Entre(vista)



Disse uma vez que um escritor nunca devia ser julgado pelas suas ideias.
- Sim, não me parece que as ideias sejam importantes.


Muito bem, então de que modo devia ele ser julgado?
- Devia ser julgado pela satisfação que proporciona e pelas emoções que se obtêm. Quanto às ideias, bem vistas as coisas não é muito importante se um escritor tem uma determinada opinião política ou se tem outra, porque a obra há-de surgir independentemente delas, como no caso do Kim, de Kipling. Suponha que considera a ideia do império inglês - bem, em Kim parece-me que as personagens de que realmente gostamos não são inglesas, mas muitas delas índios ou muçulmanos. Acho que são boa gente. E isso acontece porque ele as pensou - não, não! Não porque ela as pensou mais simpáticas - porque ele as sentiu mais simpáticas.

(Excerto da entrevista a Jorge Luís Borges, Entrevistas da Paris Review)

Odyssey in the supermarket

What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for I walked down the streets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon. 
In my hungry fatigue, and shopping for images, I went into the neon fruit supermarket, dreaming of your enumerations! 
What peaches and what penumbras! Whole families shopping at night! Aisles full of husbands! Wives in the avocados, babies in the tomatoes! - and you, Garcia Lorca, what were you doing down by the watermelons?
I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber, poking among the meats in the refrigerator and eyeing the grocery boys. 
I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price bananas? Are you my Angel? 
I wandered in and out of the brilliant stacks of cans following you, and followed in my imagination by the store detective. 
We strode down the open corridors together in our solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen delicacy, and never passing the cashier. 
Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does your beard point tonight?
 (I touch your book and dream of our odyssey in the supermarket and feel absurd.) 
Will we walk all night through solitary streets? The trees add shade to shade, lights out in the houses, we'll both be lonely. 
Will we stroll dreaming of the lost America of love past blue automobiles in driveways, home to our silent cottage? 
Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher, what America did you have when Charon quit poling his ferry and you got out on a smoking bank and stood watching the boat disappear on the black waters of Lethe?


(Allen Ginsberg,  A Supermarket in California)

Dilema nocturno #6




Terei de confessar a mim mesmo que vou para a cova com a boca a saber-me a vulgaridade e a pó? Antes me soubesse a fel - antes a dor!


(Raul Brandão, Húmus)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Bonjour mademoiselle



Em 81 disse à Dr.ª Manuela Brazette, psiquiatra, "Eu sou feia". Ela disse-me " Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais". Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego. Lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por mim. Tinha-me dito " Lambia-te esse peitinho todo". Lembrei-me também da meia dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinha dito quando eu passava " Coisinha boa" e "Borrachinho". Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Dr.ª Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher.


(Adília Lopes, Caras Baratas)



Avacalhar é qualquer coisa de fascinante. Uma mulher chamar porcalhona a outra nem se fala. 

E é Domingo. 
Bof.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Isto é tudo muito...


...Vazio.

Gosto especialmente que se refiram a mim como  uma "pessoa próxima ou conhecida". Não há um pingo de distanciamento nisso. Em todo o caso, é apropriado. Até gosto que me tratem mal. 


Este foi o 102º post e o ponto alto do blogue foi o Sacana/Sakana e o Modus Tollens (falta-me o Modus Ponens). Só o Sacana/Sakana reúne três anos de estudo e é revelador de uma certa inutilidade da aprendizagem de línguas e culturas orientais (em Portugal). Sou uma futura inútil. Facto que escondo, obviamente, dos meus progenitores. Porque haveria eu de os decepcionar antecipadamente? Aliás, eu própria sofro de decepção por antecipação, nada disto está terminado ainda. O Modus Tollens que se podia chamar "a tua breve aparição" em que não sou próxima nem conhecida, confirma, de uma forma muito válida, a indecência da tua ausência. De resto, e porque falo do blogue,  pode dizer-se que este blogue é sobre o meu vazio semi-profundo e, às vezes, é sobre assobios, aborrecimentos e coisas parvas. É isso.    




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Nico




I've stopped my dreaming,
I won't do too much scheming
These days, these days.
These days I sit on corner stones
And count the time in quarter tones to ten.
Please don't confront me with my failures,
I had not forgotten them.


(Nico - These Days)

?

Então o Natal é só um pretexto para nos oferecer-mos coisas?    Certo.


Ah, e para se ter férias. Férias para pensares e perceberes que este ano foi péssimo. Foi apático, foi mau, mau, mau. Sim, precisas mesmo de férias para pensar nisso.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010


Mas passa todo o dia cabisbaixa, cansa-se depressa e amua:

           «É aqui», diz ela tocando na garganta, «trago aqui um nó.»
Há avareza na sua maneira de sofrer. Nos seus prazeres deve haver também. Admira-me que esta mulher não tenha vontade, às vezes, de se libertar daquela dor monótona, daquele resmonear que volta a moer, assim que ela de deixa de cantar; que não deseje sofrer por uma vez, afogar-se no desespero. Mas, mesmo que quisesse, não poderia: aquele nó veda-lhe a saída ao sofrimento.

(Jean-Paul Sartre, A Náusea


Ele tem a náusea nas mãos, Lucie tem o nó. Eu tenho o livro, um livro perigoso. Uma pessoa como eu envolve-se sempre demasiado na leitura. Avizinha-se um mês terrivelmente existencial.

And the days are not full enough



And the days are not full enough
And the nights are not full enough
And life slips by like a field mouse
 Not shaking the grass.


(Ezra Pound)


Não lia Pound há muito tempo. Pego neste poema que me traz o desassossego todo numa espécie de dilema nocturno. Penso no absurdo de estar aqui neste exacto momento. A insónia, o desassossego, a insatisfação,   tudo. Era suposto parar, era suposto haver um limite. Há silêncio, há solidão, há isso tudo e no entanto não há nada. Acho que é o Caos e a loucura. E tu, sempre tu. Cercando-me as mãos.

Isto é tudo um absurdo. É a náusea há superfície da solidão. A fuga de nada e o medo. E o sono.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Tu num poema

You are the future,
the red sky before sunrise
over the fields of time.

You are the cock's crow when night is done,
You are the dew and the bells of matins,
maiden, stranger, mother, death.

You create yourself in ever-changing shapes
that rise from the stuff of our days --
unsung, unmourned, undescribed,
like a forest we never knew.

You are the deep innerness of all things,
the last word that can never be spoken.
To each of us you reveal yourself differently:
to the ship as coastline, to the shore as a ship.


( beloved Rainer Maria Rilke, The Book of Pilgrimage)





Um obrigada ao ser que me ficou com As Elegias de Duíno. É preciso agradecer também há criatura que tem o livro de Whitman.


I wake to sleep

I wake to sleep, and take my waking slow.
I feel my fate in what I cannot fear.
I learn by going where I have to go.

We think by feeling. What is there to know?
I hear my being dance from ear to ear.
I wake to sleep, and take my waking slow.

Of those so close beside me, which are you?
God bless the Ground! I shall walk softly there,
And learn by going where I have to go.

Light takes the Tree; but who can tell us how?
The lowly worm climbs up a winding stair;
I wake to sleep, and take my waking slow.

Great Nature has another thing to do
To you and me, so take the lively air,
And, lovely, learn by going where to go.

This shaking keeps me steady. I should know.
What falls away is always. And is near.
I wake to sleep, and take my waking slow.
I learn by going where I have to go.

(Theodore Roethke, The Waking )


Também acordo para me propor a fazer coisas estúpidas e impossíveis. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

domingo, 19 de dezembro de 2010

Only you and I, understand

You are tired,
(I think)
Of the always puzzle of living and doing;
And so am I.

Come with me, then,
And we’ll leave it far and far away—
(Only you and I, understand!)

You have played,
(I think)
And broke the toys you were fondest of,
And are a little tired now;
Tired of things that break, and—
Just tired.
So am I.

But I come with a dream in my eyes tonight,
And I knock with a rose at the hopeless gate of your heart—
Open to me!
For I will show you places Nobody knows,
And, if you like,
The perfect places of Sleep.

Ah, come with me!
I’ll blow you that wonderful bubble, the moon,
That floats forever and a day;
I’ll sing you the jacinth song
Of the probable stars;
I will attempt the unstartled steppes of dream,
Until I find the Only Flower,
Which shall keep (I think) your little heart
While the moon comes out of the sea.



(e.e. cummings)




Juro que isto não é um dilema nocturno. Também juro que me apetece parar, porque estou cansada e porque não há um eu e ele. (e um ele e eu) (ou um eu e eu) com ou sem parêntesis. 



Bof

The souls of dead animals

after the slaughterhouse
there was a bar around the corner
and I sat in there
and watched the sun go down
through the window,
a window that overlooked a lot
full of tall dry weeds.

I never showered with the boys at the
plant
after work
so I smelled of sweat and
blood.
the smell of sweat lessens after a while
but the blood-smell begins to fulminate
and gain power.

I smoked cigarettes and drank beer
until I felt good enough to
board the bus
with the souls of all those dead
animals riding with
me;
heads would turn slightly
women would rise and move away from
me.

when I got off the bus
I only had a block to walk
and one stairway up to my
room
where I'd turn on my radio and
light a cigarette
and nobody minded me
at all.



(Charles Bukowski)

O homem





O homem é um pequeno universo.






(Demócrito, Hélade, Maria Helena da Rocha Pereira (trad.))




sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Profético e com voluptuosidade



HAMM - Em minha casa. (Pausa. Profético e com voluptuosidade.) Um dia vais ficar cego. Como eu. Ficarás sentado em qualquer parte, pequena plenitude perdida no vácuo, para sempre, na obscuridade. Como eu. (Pausa.) Um dia pensarás: Estou cansado, vou sentar-me, e vais sentar-te. Depois pensarás: Tenho fome, vou pôr-me de pé e fazer qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé. Pensas: Fiz mal em sentar-me, mas como me sentei, vou ficar sentado ainda um bocado, depois ponho-me de pé e faço qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé e não fazes nada para comer. (Pausa.) Olhas durante um bocado para a parede e depois dizes: Vou fechar os olhos, vou talvez dormir um pouco, depois tudo vai correr melhor, e vais fechá-los. E quando os voltares a abrir já não haverá parede. (Pausa.) O infinito do vácuo rodear-te-á, todos os mortos de todos os tempos ressuscitados não o encherão, e tu serás como uma pequena pedra no meio da estepe. (Pausa.) Sim, um dia saberás o que é isto, serás como eu, excepto que tu não terás ninguém, porque não terás tido piedade de ninguém e já não haverá ninguém de quem ter piedade.

Pausa.


CLOV - Isto não está dito. (Pausa.) E depois esqueceste de uma coisa.

HAMM -  Ah.

CLOV - Não posso sentar-me.

HAMM (impaciente) - Pois bem, deitar-te-ás, não tem importância. Ou simplesmente vais parar, ficarás de pé como agora. Um dia pensarás: Estou cansado, vou parar. Que importa a posição?

Pausa.


(Samuel Beckett, Fim de Partida)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

The Face of Another



So nothing will ever be written down again. Perhaps the act of writing is necessary only when nothing happens.





(Abe Kōbō, The Face of Another)

Influência nociva




Poder-se-á dizer que certa influência é nociva só porque nos rebelamos contra ela?



Tinha perguntado Ruy Belo acerca de Breton. Tinha também dado a resposta. E eu, passado quase dois meses, pego na mesma pergunta por responder. É sempre tudo sobre mim. Sim, é. Não é assim com toda gente? 

Sempre achei que a família servia apenas para o individuo se desintegrar. O objectivo é engrandecer a estranheza para criar o ser estranho, é dissolver essa coisa chamada família. 






segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Comme le jour dépend de tes yeux purs


La courbe de tes yeux fait le tour de mon coeur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que j'ai vécu
C'est que tes yeux ne m'ont pas toujours vu.

Feuilles de jour et mousse de rosée,
Roseaux du vent, sourires parfumés,
Ailes couvrant le monde de lumière,
Bateaux chargés du ciel et de la mer,
Chasseurs des bruits et sources des couleurs

Parfums éclos d'une couvée d'aurores
Qui gît toujours sur la paille des astres,
Comme le jour dépend de tes yeux purs
Et tout monde sang coule dans leurs regards.


(Paul Éluard, Capitale de la douleur)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

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Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


(Maria do Rosário Pedreira)


Uma insónia disfarçada de poema. Um poema disfarçado de ti. Tu disfarçado de ferida. Ferida dentro de mim. 

Não vale a pena esperar. 

Ele era uma coisa frágil fora de mim.

Agora é só uma cicatriz.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

As mãos bailarinas de Tilly Losch


Sabes, adoro mãos. E adoro estas. São belíssimas.

A imagem de um homem

(...) o mais belo monumento continua a ser o próprio retrato do homem. Ele dá, melhor do que qualquer outra coisa, uma ideia daquilo que ele foi: é o melhor texto, que se presta tanto para muitas, como para poucas notas. Só que teria de ser feito também na sua melhor idade, o que vulgarmente se negligencia. Ninguém pensa em conservar formas vivas e, quando tal sucede, é sempre de forma insatisfatória. Apressam-se, então, a tirar os moldes de um morto, coloca-se esta máscara sobre um bloco e a isso chama-se um busto. Como é raro um artista ser capaz de lhe restituir por completo a vida! 
– Talvez sem saber e sem querer – respondeu Charlotte –, haveis encaminhado esta conversa em meu favor. A imagem de um homem é, no fundo, completamente autónoma; onde quer que ela se encontre, existe por si própria, e não vamos exigir dela que assinale, de facto, o local da sepultura. Mas quereis que vos confesse um sentimento estranho? Até mesmo contra os retratos tenho uma espécie de aversão, pois eles parecem fazer-me sempre uma censura silenciosa: apontam para algo de longínquo, algo que deixou de existir e lembram-me como é difícil honrar devidamente o presente. Se pensarmos na quantidade de pessoas que vimos e conhecemos, e se confessarmos a nós próprios como significámos pouco para elas, como elas significaram pouco para nós – como não nos sentiremos? Encontramos o homem de espírito sem conversarmos com ele, o homem de saber sem aprendermos com ele, o homem viajado sem ouvirmos o que ele nos tem a dizer, o homem sensível sem lhe demonstrarmos o nosso agrado. (...) 
Ouvi perguntar porque razão se diz tanto bem dos mortos, sem quaisquer reservas, e dos vivos, sempre com uma certa prudência. A resposta foi: porque dos primeiros nada temos a temer, enquanto estes últimos podem, em qualquer parte, atravessar-se ainda no nosso caminho. Tão impura é a nossa preocupação com a memória dos outros; não passa, em geral, de um divertimento egoísta, embora devesse ser uma preocupação sagrada e séria o manter viva e activa a nossa relação com os que restam.


(J.W. Goethe, As Afinidades Electivas)




Ser má pessoa não me permite manter viva e activa a relação que tenho com os outros. Os outros, que são restos. Que sabem a restos. E soam a restos.

                                   Não gosto de restos.  Nem de conjuntivites que só tornam as coisas mais vermelhas e acentuam o meu ar miserável.


  

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Um triste talento


Oh!, não me envergonho desta dependência, deste, se quiser, amor insensato, delirante. Não, nunca amei. Só agora aprendo o que isso significa. Até aqui, tudo na minha vida não passou de um prelúdio, de uma espera, de um passatempo, de um desperdício de tempo, até que a conheci, até que eu a amei, amei de todo o meu coração. Censuraram-me, não na minha frente, mas pelas costas, de quase tudo onde ponho as mãos sair atabalhoado e imperfeito. É possível, mas não tinha tido ainda ocasião de mostrar a minha mestria. Quero ver quem é que me ultrapassa no talento de amar.
É, sem dúvida, um triste talento, pleno de dores e de lágrimas; mas acho que este talento faz tanto parte da minha natureza, me é tão próprio, que dificilmente voltarei a renunciar a ele.





(J.W. Goethe,  As Afinidades Electivas)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Suna no Onna




(Suna no Onna, Hiroshi Teshigahara, 1964)



Opções:
1. Pego no livro de Abe Kōbō ou no filme de Teshigahara e comparo-o com O mito de Sísifio de Camus.
2. Faço um trabalho qualquer sobre uma coisa-qualquer-sem-interesse.
3. Pego na triologia de Teshigahara, nos livros de Abe e em Camus, Kafka, Kierkegaard, Sartre e quem mais for preciso e faço um trabalho espectacular.
4. Acabo com Macau e com todas as coisas que impliquem relações luso-chinesas.
5. Estou ansiosa e com falta de tempo (constatação)
6. Macau aborrece-me profundamente e as relações luso-chinesas também (dupla constatação)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Estas coisas estão no futuro

Agora, meu caro amigo, agora, pelos seus pecados, vai padecer o suplício de uma longa carta cheia de palavreado. Digo-lhe claramente que o vou castigar por todas as suas impertinências, por ser tão enfadonho, tão divagador, tão incoerente e tão inadequado quanto é possível. Além disso, eis-me aqui, encafuada num sujo balão, com uma ou duas centenas de passageiros pertencentes à canaille, todos eles em viagem de prazer (que engraçada concepção certas pessoas têm do prazer!), sem expectativas de tocar terra firme pelos menos durante um mês. Ninguém com quem falar. Nada para fazer. Quando a pessoas não tem nada que fazer, está na altura de se corresponder com os amigos. Compreenderá, portanto, por que razão lhe escrevo esta carta: por causa do meu ennui e dos seus pecados.
Ponha os óculos e prepare-se para suportar o aborrecimento. Tenciono escrever-lhe todos os dias durante esta odiosa viagem. 



(Edgar Allan Poe, Mellonta Tauta)

Coração, estás bem morto!



Par delicatesse

J’ai perdu ma vie.





Não quero coisa nenhuma!







quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

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Anoto no caderno: esta noite falaremos sobre uma paixão. Que mais faremos com os corpos?
(Al Berto)



Não sei o que lhes faremos. Mas sei que os meus dedos estão bailarinos e que o teclado ressuscitou. Talvez eles falem de ti ou da paixão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Haverá outro nome para o lugar onde não há lembranças de ti?



Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembranças de ti?

(Eugénio de Andrade, O outro nome da terra)


Escrevo: escrevo-te. Penso: penso-te. Leio: leio-te. Este poema sabe tanto a ti e à tua ausência. Hoje dóis-me. 

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Peach


Would you like to throw a stone at me?
Here, take all that's left of my peach.

Blood-red, deep:
Heaven knows how it came to pass.
Somebody's pound of flesh rendered up.

Wrinkled with secrets
And hard with the intention to keep them.

Why, from silvery peach-bloom,
From that shallow-silvery wine-glass on a short stem
This rolling, dropping, heavy globule?

I am thinking, of course, of the peach before I ate it.

Why so velvety, why so voluptuous heavy?
Why hanging with such inordinate weight?
Why so indented?

Why the groove?
Why the lovely, bivalve roundnesses?
Why the ripple down the sphere?
Why the suggestion of incision?

Why was not my peach round and finished like a billiard ball?
It would have been if man had made it.
Though I've eaten it now.

But it wasn't round and finished like a billiard ball.
And because I say so, you would like to throw something at me.

Here, you can have my peach stone.


(D. H. Lawrence, Birds, beasts and flowers)

Teclado no ecrã

É um mimo. Mais espectacular é impossível.







P.s1.:Volto quando tiver um novo.
P.s2.: Apesar de não conhecer o Brecht (ali do lado direito, o segundo da lista Casas, casinhas, casotas) ,acho que é espectacular. É um mimo lê-lo. E ele desapareceu, portanto, quem o encontrar que me avise.
P.s3.: Gostava de declarar mais coisas ao mundo, mas o teclado no ecrã não deixa.

domingo, 28 de novembro de 2010

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Amor, amor, como sempre,
quisera cobrir-te de flores e de insultos.






(Vincenzo Cardarelli, Espera)

sábado, 27 de novembro de 2010

Ophelia

(John Everett Millais, Ophelia, 1851-52)

Ophelia's Death



There is a willow grows aslant a brook,
That shows his hoar leaves in the glassy stream;
There with fantastic garlands did she come
Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples

There, on the pendent boughs her coronet weeds
Clambering to hang, an envious sliver broke;
When down her weedy trophies and herself
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide;
And, mermaid-like, awhile they bore her up 

But long it could not be
Till that her garments, heavy with their drink,
Pull'd the poor wretch from her melodious lay
To muddy death. 

Alas, then she is drown'd, drown'd, drown'd

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mais mon Amour ne me quitte pas


(Les Parapluies de Cherbourg, Jacques Demy,1964)



Mais
Je ne pourrai jamais vivre sans toi
Je ne pourrai pas, ne pars pas, j'en mourrai
Je te cacherai et je te garderai
Mais mon Amour ne me quitte pas






quarta-feira, 24 de novembro de 2010

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Minha amiga, viver é difícil. Já construí teorias morais de sobra para construir mais ainda, e contraditórias: sou demasiado sensato para acreditar que a felicidade apenas se encontra à beira de um erro, e o vício, tal como a virtude, não pode dar a alegria aos que a não têm em si mesmos. Simplesmente, ainda prefiro o erro (se de erro se trata) a uma denegação de nós próprios tão próxima da demência. A vida fez de mim aquilo que sou, prisioneiro (se quisermos) de instintos que não escolhi, mas aos quais me resigno, e este consentimento, assim o espero, sem me trazer felicidade, há-de proporcionar-me serenidade.


(Marguerite Yourcenar, Alexis)



O meu cérebro ressuscitou, finalmente. Depois de vários dias de quase-narcolepsia, regressei às habituais insónias. Daqui a um mês estarei novamente miserável e ninguém vai reparar. As atenções estão direccionadas para a nova criatura da família. Estou, por assim dizer, livre de todas as tentativas de normalização por parte dos meus progenitores. Já posso ser estranha à vontade. Até já me posso sentir infeliz e realmente parecer infeliz. Miserável, digo. No fundo, é para isso que servem as criaturas recém-nascidas. 


Ando aborrecida, tenho sido uma aluna péssima. O mais chato é que posso ser uma aluna excelente. É só uma questão de não me aborrecer. Como quem diz, assobiar menos.

(Ponto)





terça-feira, 23 de novembro de 2010

Modus tollens

Se ele é sacana, também é indecente
Não é vil.
Logo, só pode ser um sacana indecente.




Argumento muitíssimo válido.


(E foi mais uma interrupção no meu estudo de chinês)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pergunta o super-ego





Do I dare 
Disturb the universe?

|

C'est de naturel des hommes: tant qu'on vit, on se trompe. Hors, il faut bien vivre.



(Milan Kundera, Le Livre du Rire et de L'Oubli)

domingo, 21 de novembro de 2010

Indecência saudável




É de admirar um homem que diz que é vil no sentido mesquinho e infame da vileza. Já os sacanas, aqueles literalmente sacanas, são realmente indecentes. O D. H. Lawrence tem um poema que diz que a indecência pode ser saudável. Nada que se aplique a um sacana indecente nada saudável como ele. 

Sacana/Sakana

Ele é um sacana. Também é um peixe.








(Perceba-se que em japonês sakana é peixe)
(Não tenho mais nada a declarar ao mundo, por agora)


(É isso)

sábado, 20 de novembro de 2010

Acaba lá com isso, ó coração!

Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba lá com isso, ó coração!


(Álvaro de Campos)


O meu coração é comestível como uma fruta. 

E nêsperas também

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


(Mário Henrique-Leiria)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Tangerina




EXPERIMENTAVA viver, quase como um exercício. Tinha seios nas mãos e a cara totalmente transformada em ovo. Palpitava-lhe nas têmporas um amor patético pelo mundo, tão ridículo e imenso que lá caberiam, pouco apertados, os outros amores. E dormia acordado, pelo prazer de esbater fronteiras.

Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofro de inveja de quem tem ternura. Eu já só tenho raiva.

(…)


(Manuel Cintra, Tangerina)



Tenho uma obsessão por Tangerinas desde que descobri a Tangerina do Al Berto em À procura do vento num jardim d'agosto e agora aparece esta outra Tangerina. Uma ternura, como diria o senhor embaixador.
Também gosto de pêssegos, porque acho que os gatos se assemelham aos pêssegos e porque o D. H. Lawrence tem um poema chamado Pêssego que é uma delícia. Gosto de pêssegos porque gosto de gatos. Aliás, acredito mesmo que os pêssegos tenham razões muito profundas, mais profundas que esta minha razão pateta de gostar deles só porque gosto de gatos e poemas.





quinta-feira, 18 de novembro de 2010

What's a question like that?

Lessons In Hunger

"Do you like me?"
I asked the blue blazer.
No answer.
Silence bounced out of his books.
Silence fell off his tongue
and sat between us
and clogged my throat.
It slaughtered my trust.
It tore cigarettes out of my mouth.
We exchanged blind words,
and I did not cry,
and I did not beg,
blackness lunged in my heart,
and something that had been good,
a sort of kindly oxygen,
turned into a gas oven.
Do you like me?
How absurd!
What's a question like that?
What's a silence like that?
And what am I hanging around for,
riddled with what his silence said?

(Anne Sexton)


Idiota

Falo demais, e, no entanto, escrever é estar calada. Precipitei-me nas palavras, dei-lhe as piores quando afinal um sorriso chegava.






Sou uma criatura irracional e incoerente. E também estou relativamente magoada com a sua ausência e, por isso, interpretei mal as suas palavras.



Acho que é hora de parar e respirar. Escrever ou ler não é tão urgente. É tudo, sempre, uma fuga de nada.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cem mil anémonas

E eu não conheço nenhuma. 



Ah, não mais ter a consciência de ser, como uma pedra, como uma planta! Não recordar sequer o nome! Estendidos na erva, com as mãos cruzadas na nuca, olhar no céu azul as nuvens brancas que pairam, deslumbrantes, inchadas de sol; ouvir o vento que soa lá em cima, entre os casntanheiros, do bosque com um fragor de mar. 
Nuvens e vento. 
O que disse? Ai de mim, ai de mim. Nuvens? Vento? E não lhe parece que é tudo, olhar e reconhecer que aquilo que paira no azul interminável e vazio são nuvens? A nuvem sabe porventura que existe? Nem a árvore nem a pedra, que se ignoram até a si mesmas, sabem que a nuvem existe; e estão sós.



(Luigi Pirandello, Um, Ninguém e Cem Mil)


Esta parte lembra-me Caeiro.O resto não. 

Existe sempre o perigo da loucura. Ou de não nos encontrar-mos nunca, porque se o encontro é o início da separação, quando se trata de nós, o desencontro é eterno. E a descoberta nunca se proporciona. 

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Seja como for ele já estava avariado

Sobre o lado esquerdo


De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



(Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo)


Vá-se lá saber como é que isto surgiu assim, tão inesperadamente, e em dois sítios quase ao mesmo tempo. Há um dia de diferença, e o meu vem depois. Não gosto que venha depois. Quanto ao coração, é o que o título diz, está avariado, do lado esquerdo e do lado direito, e pesa tanto como sempre. Pesa em quantidades elevadas de tristeza e de saudade. Porque uma não existe sem a outra. Lembras-te da Menina do Mar? Se não, então lembra-te de mim, da anémona-tangerina-menina, porque eu sei que lá dizia que a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora. Sabes que viver aqui, em Portugal, é viver no Reino da Saudade e da Tristeza. E há pessoas com "quartos da felicidade", imagina uma biblioteca privada, como a do quadro. Isso pode ser um quarto da felicidade. Depois há os outros, para cantar, dançar, sorrir. Quartos escondidos, daqueles que pouca gente tem e quase ninguém conheçe. E quem não os conheçe, ou então se perdeu deles, fica nesta solidão disfarçada de tristeza e saudade. A vida esgota-se e o sono também. É-se louco e triste, não se é belo, e há só um enorme desamor nesta coisa avariada. Que como os gatos, perde vidas, perde-as em suspiros e lágrimas, perde-as para a melancolia. Perde-as para a saudade daquele que nos fere a memória com a sua ausência. Porque o silêncio e o amor são tão mortais como o sofrimento.  

Encontro

Um ser que estuda tem obrigações e, por mais que se desgoste de ouvir o monólogo interior exteriorizado de alguém, nem sempre se desgosta de tudo. E eu gostei de encontrar isto nas minhas leituras inevitáveis.

(Cherry Blossoms in Mint Office at Osaka. Kobe, 20 de Abril de 1910 – Bilhete postal enviado por Wenceslau de Moraes para Maria Joaquina Campos, Lisboa.)


Encontro - o começo da separação.

(...) 
Deve entender-se que o provérbio visa muito especialmente o encontro entre dois indivíduos dos dois sexos, isto é, o encontro amoroso, o amor, que é a paixão no seu estado mais intenso, paixão, a grande força emotiva que electriza uma grande parte da família humana, estonteando-a, cegando-a à razão, ao cumprimento de seus deveres, arrastando-a tantas vezes a todas as ignomínias e finalmente à perdição!... E para quê? Prazeres momentâneos, ilusões passageiras, de mistura com muitas contrariedades, com muitas desilusões, com muitas angústias; caminhando tragicamente para a separação, para a ruptura, seja pela saciedade dos desejos, seja pela fricção de dois temperamentos diferentes e incompatíveis entre si, seja pelos obstáculos que se levantam de surpresa, seja por qualquer de outras mil causas imprevistas... E quando assim não aconteça, quando Ele e Ela gozam o raro privilégio de saberem furtar-se às tempestades da existência, guiando imperturbavelmente a gôndola de seus amores por aprazíveis calmarias, virá um dia a morte, a que ninguém resiste, pôr termo ao idílio, decretar a separação, a ruptura, roubando a um o ente querido... E dirá o sacerdote budista ao crente, que o escuta: - «Queres evitar a separação? Há um meio seguro: evita o encontro.»
E eu direi ao sacerdote budista: - «Bonzo, tu tens razão, sem dúvida. Prega desafogadamente essa doutrina e aumenta a legião dos bem-aventurados. Mas eu rejeito-a para meu uso, tenha embora de sofrer todos os suplícios do inferno do Budismo, os quais sei, por pinturas que por vezes relanceei, serem atrozes. Eu amei, amei muito; e só me pesa não ter amado mais. Eu aprendi a amar, nem tu podes supor como: - quando encontrei um dia, há muito tempo, duas borboletas bailando uma com a outra, beijando-se ao mesmo tempo, sobre as florescências perfumadas de um vegel; - e, em assuntos de amor, eu creio mais nas borboletas do que em Buda.... Vais falar-me, talvez, de separação, de ruptura. Conheço as punhaladas da separação, da ruptura; conheço-as e ainda hoje o coração me sangra delas. Quisera ter dado outro desfecho a estes tristes lances; foi-me impossível. Mas não me lamento, não; mas não me arrependo, não. Amei, sofri, sofro; tudo acabou; tudo não, resta a saudade, que é ainda um dos aspectos fulgurantes do amor. E antes que tu, ó bonzo, ungindo de irónica piedade, venhas sorrir com amargor em face da minha desventura impenitente, quero bradar-te ainda as minhas ultimas palavras sobre este assunto interessante: - tu sabes muitas coisas, certamente; mas ignoras uma pelo menos, O GRANDE PRAZER DO SOFRIMENTO!...

Tokushima, Janeiro de 1920

(Wenceslau de Moraes, Ó-Yoné e Ko-Haru)





domingo, 14 de novembro de 2010

Como é que os loucos podem ter sono!

- Há pessoas, imaginem, que não dormem!
- E porque não dormem?
- Porque nunca têm sono.
- E porque não têm sono?
- Porque são loucos.
- Então os loucos não têm sono?
- Como é que os loucos podem ter sono!


(Franz Kafka, Crianças na estrada nacional)

Can you hear me Major Tom?



Hoje não foi domingo (ponto)

Sou a forma feminina de mau

Sou má pessoa, é verdade. Por muito que quisesse contrariar não consigo, não posso, não me apetece. Também gosto das ditas "boas pessoas", mas só porque me fazem cocegas ao ego e não são nada perversas.

sábado, 13 de novembro de 2010

Le Diable Probablement



Este tipo é bastante lúcido, por sinal. Não me encontrasse eu neste limbo, e seria um animal tão saudável quanto ele. Claro que um individuo que vê de mais acaba sempre incompreendido, é, portanto, uma proeza, sobreviver nesta selva. 

O objecto do universo II

Não é um verdadeiro leitor, um philosophe lisant, aquele que nunca sentiu o fascínio acusador das grandes prateleiras de livros não lidos, das bibliotecas à noite de que Borges é o fabulista. Não é um leitor aquele que nunca ouviu, no seu ouvido mais íntimo, o apelo das centenas de milhares, dos milhões de volumes alinhados nas estantes da British Library ou de Widener, pedindo que os leiam. Pois existe em cada livro um desafio contra o esquecimento, uma aposta contra o silêncio que só pode ser ganha quando o livro for de novo aberto (mas, em contraste com o homem, o livro pode esperar séculos pela sorte da ressurreição).(...) Mas os livros que não abrimos chamam igualmente por nós, num clamor tão silencioso, mas também tão insistente, como o fluir da areia na ampulheta.

(George Steiner, Paixão Intacta)


Recebi um elogio não intencional. De alguém, que na tentativa de aprofundar conhecimentos sobre esta criatura, me tomou por uma coisa que não sou. Não foi um elogio, mas foi a percepção da percepção que o outro tem de mim. Neste caso foi uma espécie de percepção elogiosa. 
Para que conste, não me aproveitei da situação. Até porque hoje estou suficientemente maravilhada com os livros que trouxe da biblioteca. Depois de alguma indecisão, e de subir e descer o escadote à procura do livro (que acabei por não encontrar), cruzei-me com George Steiner no topo da estante, e revi ainda pelo caminho Os Cantos de Pound lido há uns tempos. Lamentei a ausência dos livros que me tinham levado a ir lá, amaldiçoei umas quantas pessoas, entre eles, professores que se apoderam de livros para a eternidade. E peguei, finalmente, no colossal livro de Edgar Allan Poe que reúne todos os contos e que cobiçava desde que foi publicado. Não trouxe nenhum livro de poesia. Talvez para o contrariar, porque ele disse que eu só leio poesia, e disse-o num tom depreciativo. É um individuo que não compreende claramente o apelo dos livros. Ou que nunca se sentiu esmagado pela dimensão da biblioteca e pela certeza da impossibilidade de ler tudo, simplesmente porque não é eterno. Mas, tragicidade à parte, se um individuo ler aquilo que realmente lhe interessa é capaz de ficar minimamente satisfeito. Assim, dando-lhe razão e contrariando-o ao mesmo tempo. Tão paradoxalmente como sempre. Peguei nos dois livros para ressuscitar mais tarde e saí.



Numa coisa concordamos, sou céptica. 

O objecto do universo

(Jean-Baptiste Siméon Chardin, Le philosophe lisant, 1734)

Consideremos em primeiro lugar a maneira de vestir do leitor. É manifestamente formal, até cerimoniosa. A sobreveste e o chapéu guarnecidos de pele sugerem brocado, uma sugestão que é intensificada pelo brilho mate mas áureo do seu colorido.  (...) O que importa é a acentuada elegância, a intenção de estar vestido com distinção naquele momento. O leitor não encontra o livro casualmente nem vestido de qualquer maneira. Está vestido para a ocasião, um procedimento que dirige a nossa atenção para a interpretação de valores e de sensibilidade que incluí tanto a «vestimenta» como o «investimento». O carácter fundamental do acto, da auto-investidura do leitor antes do acto de leitura, é de cortesia, um termo que só de modo imperfeito corresponde a courtesy. Ler, aqui, não é um gesto casual e espontâneo. É um encontro cortês, quase palaciano, entre um particular e um daqueles «convidados ilustres» cuja entrada nas casas dos mortais é evocada por Hölderlin no seu hino «Como num dia festivo» e por Coleridge numa das glosas mais enigmáticas que juntou A Rima do Velho Marinheiro. O leitor encontra-se com o livro com uma nobreza de coração (é esse o significado de cortesia) e com uma nobreza e um desvelo de acolhimento e de hospitalidade de que a manga avermelhada, possivelmente de veludo ou veludilho, e a sobreveste e o gorro guarnecidos de pele são os símbolos exteriores. 


(George Steiner, Paixão Intacta)

Interrogação

Como compreender psicologicamente, socialmente, a capacidade dos seres humanos de interpretarem e serem sensíveis, por exemplo, a Bach ou Schubert, à noite, e de torturarem outros seres humanos na manhã seguinte?



(George Steiner, Errata. An examined life)





O ser humano é perverso.

Pelo menos tu és.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

(sufocar)






Sabes, antes de tu chegares havia muito mais aqui. Agora há só uma indiferença profunda e inflamada dentro do meu peito. E um grito ou uma coisa qualquer, que não rasga nem me deixa respirar.








quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Dilema nocturno #5



No fundo, a Berma seria uma desilusão sem o senhor Norpois. As expectativas eram tais e as impressões tão confusas, que havia uma certa inquietação. Uma inquietação que retirou valor à experiência. E aquilo que deveria ter sido delicioso foi quase desagradável. Felizmente, o senhor Norpois, mil vezes mais inteligente que ele, revelou-lhe a verdade. 



(Preciso de um senhor Norpois, mais inteligente que a minha pessoa e que me faça ignorar menos o mundo. Sim, porque isto é tudo tão delicioso que me faltam todas as verdades.)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cosmic Love



Tenho de admitir que gosto. Sempre tive dificuldade em gostar de coisas que a maioria gosta. Mas na impossibilidade de viver num mundo exclusivo, rendo-me (só um bocado).

Agora, vou ver um episódio do Dartacão gravado com propósitos nostálgicos nocturnos.

E ainda:
O gato precisa do arco-íris. Ninguém é vermelho sempre. E eu sou-o pela pessoa errada.
Também sou má pessoa. Mas isso é para depois.

domingo, 7 de novembro de 2010

Existir de olhos fechados



O perigo da máscara é perdê-la e ficar sem rosto. Há pessoas que não existem sem rosto. E os que existem sem pensar, esses, usam uma só.


E eu existo de olhos fechados porque ainda não sei quem sou.

17 e 56

Ao teu suspiro, que me doeu um instante, e agora lembro num labirinto de palavras.
Seria cansaço ou lamento? Como uma primeira impressão que te escapa ao rosto tapado e que não mente.


São 17 e 56, disse-o baixinho. Olhei-te e repeti em voz alta, são 17 e 56 e só depois percebi que isso não se diz.


Era cansaço e lamento. 

Ainda são 17 e 56.

Um Dia, um Gato

(Az Prijde Kocour, Vojtech Jasný,1963)



Vermelha

Salvar o dia


todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetecia ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me. desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer, que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado, nem me parece que esteja feliz. escrevo com um único fim: salvar o dia.


(Al Berto, O Medo)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

*23

A existência do terrível em cada partícula do ar. Tu respira-lo com a sua transparência: mas ele condensa-se em ti, endurece, assume formas pontiagudas e geométricas entre os orgãos; pois todas as torturas e terrores cometidos em lugares de suplício, nas câmaras de tortura, nos manicómios, nas salas de operações, debaixo dos arcos das pontes no fim do Outono: tudo isso é de uma resistente intemporalidade, tudo subsiste e se agarra, ciumento daquilo que é, à sua terrível realidade. As pessoas gostariam de poder esquecer muitas dessas coisas; o seu sono lima suavemente esses sulcos no cérebro, mas os sonhos expulsam-no e sublinham os seus desenhos. E elas acordam, ofegantes, e deixam diluir-se no escuro o brilho de uma vela e bebem como se fosse água açucarada este calmante semiclaro. Mas, ai, em que aresta resiste esta segurança? Basta o menor dos movimentos e já o olhar ultrapassa as coisas conhecidas e amigas, e o contorno ainda agora tão tão consolador precisa-se como uma orla de terror. Abriga-te da luz que torna mais vazio o espaço; não olhes à tua volta para ver se alguma sombra acaso se ergue atrás da tua vigília com teu senhor. Mais teria valido teres permanecido no escuro e o teu coração ilimitado ter tentado ser o coração pesado de tudo o que é indistinto. Agora que todo te recolheste em ti, sentes-te terminar nas tuas mãos, refazes, de tempos a tempos, o contorno do teu rosto com um movimento impreciso. E em ti quase não há espaço; e quase te apazigua o facto de, nesta tua tristeza interior, não ser possível deter-se qualquer coisa muito grande; o facto de mesmo o inaudito ter de se interiorizar e de se adaptar às circunstâncias. Mas lá fora, lá fora tudo é desmedido. E quando lá fora o nível sobe, também em ti ele se eleva, não nos vasos que em parte estão em teu poder, ou no fleuma dos teus orgãos mais impassíveis: eleva-se nos capilares, aspirado para cima em canais até às últimas ramificações da tua existência infinitamete ramificada. Aí se ergue, aí te ultrapassa, alcança mais alto do que a tua respiração, na qual te refugias como num último reduto. Ai, e agora para onde ir, para onde ir? O teu coração expulsa-te de ti mesmo, o teu coração persegue-te, e tu estás quase fora de ti e já não podes regressar. Como um escaravelho que se pisa, assim tu escorres dentro de ti, e a tua pequena parcela de dureza exterior e de adaptação não faz qualquer sentido.

(...)

( Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge)

*

Tenho inveja de indivíduos que nasceram com toda certeza do mundo. Porque isto de me sentir perdida aos 22 anos anos começa a fazer pouco sentido e também não é coisa que os outros compreendam facilmente.

Sim, isto faz sentido.

A minha insónia tem nome: The Dresden Dolls. E a tocar a War Pigs agorinha mesmo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Não, não tem.

O futuro
talvez venha a ter gente assim
feita da substância
da luz; 
o vagaroso futuro; 
o presente não, não tem.


(Eugénio de Andrade, Arte dos versos)






Era bom poder dormir.
                                          Mas a Tangerina não pode. 
                                                                                      Vai ler e tomar um chá.


E tentar não pensar. 

                                Se pensar logo se vê.

Os piqueniques mentais nocturnos são prejudiciais.

                                                                          E as palavras são um perigo.

Futurizar é saber que não vou dormir o necessário para ter o ar de uma pessoa saudável amanha de manhã.

Boas noites.

                                                         

                                                           


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Prelúdio de uma insónia

Ofício de Amar


já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo



(Al Berto)




Sim, isso. Porque tenho a pérola e estou cansada. Tenho esse supremíssimo cansaço seguido de infinitos íssimo.
Não é uma boa noite para sentir.
Não foi um bom dia para te lembrar.
Acho que tinhas demasiadas expectativas, acho.
Acho que morreste pelos teus 16 anos, embriagado em Rimbaud e Eugénio. És adulto, demasiado adulto para sentires. E eu não.


This Is Just To Say



I have eaten
the plums 
that were in 
the icebox 

and which 
you were probably 
saving 
for breakfast 

Forgive me 
they were delicious
so sweet 
and so cold

(W. C. Williams)

domingo, 31 de outubro de 2010

Expectativas

Abomino expectativas porque falseiam a realidade. O sofrimento acaba por se sobrepor ao prazer e, no fim, fica a desilusão.

Perspectivas


Relacionar tempo e felicidade é uma idiotice. Aliás, ligar tempo a qualquer outra coisa é uma idiotice. Por exemplo, foi numa das dinastias mais curtas que se fizeram as obras mais representativas da civilização chinesa. Mas, recuando ainda mais no tempo, é de invejar o homem das cavernas, porque esse desconhecia o tempo. E voltando de novo aos chineses, é de compreender que o imperador tenha mandado executar aquele que disse ter inventado o relógio. Nem é de compreender, é de amar. Fascina-me não a violência do acto, mas a ausência de tempo. O mesmo se passa na língua, há uma falta de futuro, de conjugação, há um quase-futuro que não chega a ser, está subentendido, está limitado a uma partícula. Sem tempo não há futuro, não há perspectiva, há uma linha recta, uma linha contínua. Não há inquietação. 
Já tudo foi descoberto, muita coisa foi criada, gosto de acreditar que tudo ainda está por inventar e que nada está escrito afinal. As perspectivas ingénuas foram sempre melhores. Não sou o homem das cavernas, não mandei matar o tempo, não sou um animal triste numa selva cinzenta, só não gostei de ver tempo e felicidade juntos. 

domingo, 24 de outubro de 2010

Sadnesses of the intellect

Dilema nocturno #4

Aborreço-me facilmente. Não tenho paciência para tretas, por isso passo a vida a assobiar para o lado. Admito que gosto que me façam cocegas ao ego. Mas entre o aborrecer-me e o assobiar há uma preguiça imensa. 


Há dois dias atrás dormi oito horas. Não me senti feliz. Não estou menos cansada. Fiz uma composição em mandarim. Tenho dois livros novos para ler. Um deles é o À Sombra das Raparigas em Flor de Proust, vou, portanto, no segundo volume de Em Busca do Tempo Perdido. O outro é do Ruy Belo.
Devia estudar japonês. Mas, para além de me aborrecer fico ansiosa e apetece-me ler ou ver filmes. É quando penso no meu professor que é um mimo e que diz "o deleite intelectual não é tudo na vida" ou "é uma ternura um livro daqueles", e o senhor, contrariando-se, convence-me que é melhor ler o livro.

Isto não é um diário.

Boa noite.

Vou pensar nisto:
"Poder-se-á dizer que certa influência é nociva só porque nos rebelamos contra ela?" -Pergunta Ruy Belo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Assobio

 O traje, o ar adulto, a certeza, os números, não são meus. Os dias sim. Mas não o 22. Agora, agradeço que não me felicitem por não saber quem sou. A vida ainda é como um vestido que não me serve, e, os dias, como o outro dizia, ainda são meus.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A mensagem do pássaro-extra-programa

(...)
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões a écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se pareça


(Mário Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital)

No aqueduto largo do meu peito não há sossego. Convenhamos que devido à miséria deste tempo e à ensombração maligna de certas lágrimas nocturnas. Fico irrequieta. E não durmo.



Mais logo

                                    hei-de estar cansada
                                                                                              de todas as palavras

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Valor do Vento



Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

Ruy Belo





terça-feira, 19 de outubro de 2010

Propósito obscuro

(...)


Esta é a pressão de uma mão tímida, este é o aroma dos cabelos que esvoaçam,
Este é o roçar dos meus lábios nos teus, este é o murmúrio do desejo,
Esta é a profundeza e a altura distantes reflectindo o meu próprio rosto,
Esta é a meditativa fusão de mim próprio, e a saída outra vez.

Achas que tenho algum propósito obscuro?
Sim, tenho, como o têm as chuvas do quarto mês, e o tem a mica sobre as rochas.



(Walt Whitman, tradução de José Agostinho Baptista, Canto de mim mesmo)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Balthazar deita-se e morre


(Au Hasard Balthazar, Robert Bresson, 1966)

Um jardim

Há um murmúrio de águas frescas, através
dos ramos das macieiras, as rosas ensombram
todo o solo, e das folhas trémulas
escorre o sonho.


Safo

(Da Hélade, Antologia de Cultura Grega, por Maria Helena da Rocha Pereira)

Livro que surripiei à minha irmã, por ter os mesmos cinco livros há duas semanas. Por me lembrar que não posso estudar tudo,e, que o domingo não foi Domingo, porque esses são raros. Porque escrevo às duas da manhã, porque estou em desassossego, porque estou cansada, porque...
....acabou-se o chá!



Amanhã

mais.

Balthazar

sábado, 16 de outubro de 2010

E também se pode morrer de falta de amor. Não?

MGM    A pergunta era: Porquê a necessidade do outro?

MC    Eu sei lá, pergunta ao Jeová.
Não fui eu que criei essa necessidade.
Eu acho que em muitos casos, o outro é o nosso espelho, sem esse espelho não nos vemos. Não existimos. É claro que podes dizer que isto é um bocado abusivo, que eu no espelho não vejo senão a mim, mas não é isso. Eu no espelho ou vejo os dois ou vejo o outro, através de mim. E os seres habituais têm necessidade desse encontro, que não é um espelho mudo, etc. 
Não é o Narciso, que esse quer ver-se a si próprio, não! É o que olha para a água e olha para o espelho e vê o outro, ou a outra, com quem pode conversar, viver. 
Isto é um bocadinho estúpido também, mas é da sabedoria antiga. (ri)

MGM   O Mário acredita que se pode morrer de amor?

MC    Até os animais. E talvez sobretudo os animais. Porque talvez não tenham inteligência suficiente para compensar, ir ao cinema para distrair. Mas eu acho que sim, que se pode morrer de amor.
Quer dizer, pronto, dá uma constipação, dá uma coisa qualquer, o senhor morre. O Ernesto Sampaio é um caso desses, quando morreu a Fernanda ele não sabia viver, não sabia. Ele escreveu um livro chamado Fernanda, que eu se fosse a ele nem publicava aquilo, porque é um grito tão horrível, tão forte, que a chamada literatura não aguenta aquilo. Não aguenta!
Não sei se conheces esse livro, é um poema, é uma COISA!
Depois morreu, pronto. Não sabia viver sem a Fernanda, é um caso palpável.
E também se pode morrer de falta de amor. Não?

(Mário Cesariny, Verso de Autografia)


Boa noite.