Desenganem-se, esta música é pura alegria para mim. O mais provável é isto ser um dilema nocturno.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Miseravelmente apática
Reparai bem, a intenção era escrever sobre este ano, mas foi um ano de merda (perdoai-me) e não há nada que me apeteça dizer sobre ele. Um Bof era capaz de definir bem as coisas, mas não, nem o bof mais vão de todos me satisfaz. A situação agrava-se quando o meu lado voyeurzinho decide vasculhar o facebook alheio (sim, que é para isso que ele serve) e é então que dou com uma daquelas notas de uma pseudo-amiga. A dita nota era sobre 2010, o balanço era mais ou menos posítivo. Ora, esta tipa que mal conheço não teve um ano nada miserável. Fiquei a saber que tirou a carta, começou a usar saltos e as mamas ainda lhe crescem. Mas isto interessa? Pois claro que sim, vamos lá agudizar a miserabilidade da minha pessoa. Esta criatura é provavelmente uns quatro anos mais nova que eu. Eu que ainda não tirei a carta, que não uso saltos e que coitadita sou pobre nesses atributos femininos. Não que isto me desperte qualquer tipo de interesse, mas, vá, são coisas que alguém mais novo que eu fez. É claro que são coisitas que eu consigo, mas um individuo miserávelmente apático nem isso faz. Percebi, então, que começo a ficar velha e que esta tipa me incomoda realmente. Incomoda-me porque não é discreta, porque não é triste e não leu nenhum livro. Além de má voyeur, sou invejosa e admiro secretamente gente miserável. Faço coisas contra a minha vontade, o que me torna num monstrinho adulto. Adulta, é isso. Sou desprezível. Ainda sou só meia-adulta, mais velha que adulta. Passei o ano a lutar contra mim e a fugir de nada e 2010 não só foi uma merda, como 2011 me é perfeitamente indiferente. É tudo.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Again she falls, again she dies, she dies!
(Jean Cocteau, Orphée,1949)
But soon, too soon the lover turns his eyes;
Again she falls, again she dies, she dies!
How wilt thou now the fatal sisters move?
No crime was thine, if 'tis no crime to love.
Now under hanging mountains,
Beside the falls of fountains,
Or where Hebrus wanders,
Rolling in Meanders,
All alone,
Unheard, unknown,
He makes his moan;
And calls her ghost,
Forever, ever, ever lost!
Now with furies surrounded,
Despairing, confounded,
He trembles, he glows,
Amidst Rhodope's snows.
See, wild as the winds o'er the desert he flies;
Hark! Haemus resounds with the Bacchanals cries -
-Ah, see, he dies!
Yet even in death Eurydice he sung,
Eurydice still trembled on his tongue;
Eurydice the woods,
Eurydice the floods,
Eurydice the rocks, and hollow mountains rung.
(Alexander Pope, Ode for Musick, que se encontra aqui )
Eu a lembrar-me de ti, de Lira e Vega. E da possibilidade de infelicidade e solidão.
Possibilidades de felicidade
Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a comprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.
(Jorge Luís Borges, Borges Oral)
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Deus verme
Se fores capaz de ser um verme, serás também capaz de ser um Deus.
(Henry Miller, O Tempo dos Assassinos)
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Entre(vista)
Disse uma vez que um escritor nunca devia ser julgado pelas suas ideias.
- Sim, não me parece que as ideias sejam importantes.
Muito bem, então de que modo devia ele ser julgado?
- Devia ser julgado pela satisfação que proporciona e pelas emoções que se obtêm. Quanto às ideias, bem vistas as coisas não é muito importante se um escritor tem uma determinada opinião política ou se tem outra, porque a obra há-de surgir independentemente delas, como no caso do Kim, de Kipling. Suponha que considera a ideia do império inglês - bem, em Kim parece-me que as personagens de que realmente gostamos não são inglesas, mas muitas delas índios ou muçulmanos. Acho que são boa gente. E isso acontece porque ele as pensou - não, não! Não porque ela as pensou mais simpáticas - porque ele as sentiu mais simpáticas.
(Excerto da entrevista a Jorge Luís Borges, Entrevistas da Paris Review)
Odyssey in the supermarket
What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for I walked down the streets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon.
In my hungry fatigue, and shopping for images, I went into the neon fruit supermarket, dreaming of your enumerations!
What peaches and what penumbras! Whole families shopping at night! Aisles full of husbands! Wives in the avocados, babies in the tomatoes! - and you, Garcia Lorca, what were you doing down by the watermelons?
I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber, poking among the meats in the refrigerator and eyeing the grocery boys.
I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price bananas? Are you my Angel?
I wandered in and out of the brilliant stacks of cans following you, and followed in my imagination by the store detective.
We strode down the open corridors together in our solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen delicacy, and never passing the cashier.
Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does your beard point tonight?
(I touch your book and dream of our odyssey in the supermarket and feel absurd.)
Will we walk all night through solitary streets? The trees add shade to shade, lights out in the houses, we'll both be lonely.
Will we stroll dreaming of the lost America of love past blue automobiles in driveways, home to our silent cottage?
Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher, what America did you have when Charon quit poling his ferry and you got out on a smoking bank and stood watching the boat disappear on the black waters of Lethe?
(Allen Ginsberg, A Supermarket in California)
Dilema nocturno #6
(Raul Brandão, Húmus)
domingo, 26 de dezembro de 2010
Bonjour mademoiselle
Em 81 disse à Dr.ª Manuela Brazette, psiquiatra, "Eu sou feia". Ela disse-me " Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais". Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego. Lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por mim. Tinha-me dito " Lambia-te esse peitinho todo". Lembrei-me também da meia dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinha dito quando eu passava " Coisinha boa" e "Borrachinho". Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Dr.ª Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher.
(Adília Lopes, Caras Baratas)
Avacalhar é qualquer coisa de fascinante. Uma mulher chamar porcalhona a outra nem se fala.
E é Domingo.
Bof.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Isto é tudo muito...
...Vazio.
Gosto especialmente que se refiram a mim como uma "pessoa próxima ou conhecida". Não há um pingo de distanciamento nisso. Em todo o caso, é apropriado. Até gosto que me tratem mal.
Este foi o 102º post e o ponto alto do blogue foi o Sacana/Sakana e o Modus Tollens (falta-me o Modus Ponens). Só o Sacana/Sakana reúne três anos de estudo e é revelador de uma certa inutilidade da aprendizagem de línguas e culturas orientais (em Portugal). Sou uma futura inútil. Facto que escondo, obviamente, dos meus progenitores. Porque haveria eu de os decepcionar antecipadamente? Aliás, eu própria sofro de decepção por antecipação, nada disto está terminado ainda. O Modus Tollens que se podia chamar "a tua breve aparição" em que não sou próxima nem conhecida, confirma, de uma forma muito válida, a indecência da tua ausência. De resto, e porque falo do blogue, pode dizer-se que este blogue é sobre o meu vazio semi-profundo e, às vezes, é sobre assobios, aborrecimentos e coisas parvas. É isso.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Nico
I've stopped my dreaming,
I won't do too much scheming
These days, these days.
These days I sit on corner stones
And count the time in quarter tones to ten.
Please don't confront me with my failures,
I had not forgotten them.
(Nico - These Days)
?
Então o Natal é só um pretexto para nos oferecer-mos coisas? Certo.
Ah, e para se ter férias. Férias para pensares e perceberes que este ano foi péssimo. Foi apático, foi mau, mau, mau. Sim, precisas mesmo de férias para pensar nisso.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Nó
Mas passa todo o dia cabisbaixa, cansa-se depressa e amua:
«É aqui», diz ela tocando na garganta, «trago aqui um nó.»
Há avareza na sua maneira de sofrer. Nos seus prazeres deve haver também. Admira-me que esta mulher não tenha vontade, às vezes, de se libertar daquela dor monótona, daquele resmonear que volta a moer, assim que ela de deixa de cantar; que não deseje sofrer por uma vez, afogar-se no desespero. Mas, mesmo que quisesse, não poderia: aquele nó veda-lhe a saída ao sofrimento.
(Jean-Paul Sartre, A Náusea)
Ele tem a náusea nas mãos, Lucie tem o nó. Eu tenho o livro, um livro perigoso. Uma pessoa como eu envolve-se sempre demasiado na leitura. Avizinha-se um mês terrivelmente existencial.
And the days are not full enough
And the days are not full enough
And the nights are not full enough
And life slips by like a field mouse
Not shaking the grass.
(Ezra Pound)
Não lia Pound há muito tempo. Pego neste poema que me traz o desassossego todo numa espécie de dilema nocturno. Penso no absurdo de estar aqui neste exacto momento. A insónia, o desassossego, a insatisfação, tudo. Era suposto parar, era suposto haver um limite. Há silêncio, há solidão, há isso tudo e no entanto não há nada. Acho que é o Caos e a loucura. E tu, sempre tu. Cercando-me as mãos.
Isto é tudo um absurdo. É a náusea há superfície da solidão. A fuga de nada e o medo. E o sono.
Isto é tudo um absurdo. É a náusea há superfície da solidão. A fuga de nada e o medo. E o sono.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Tu num poema
You are the future,
the red sky before sunrise
over the fields of time.
You are the cock's crow when night is done,
You are the dew and the bells of matins,
maiden, stranger, mother, death.
You create yourself in ever-changing shapes
that rise from the stuff of our days --
unsung, unmourned, undescribed,
like a forest we never knew.
You are the deep innerness of all things,
the last word that can never be spoken.
To each of us you reveal yourself differently:
to the ship as coastline, to the shore as a ship.
Um obrigada ao ser que me ficou com As Elegias de Duíno. É preciso agradecer também há criatura que tem o livro de Whitman.
the red sky before sunrise
over the fields of time.
You are the cock's crow when night is done,
You are the dew and the bells of matins,
maiden, stranger, mother, death.
You create yourself in ever-changing shapes
that rise from the stuff of our days --
unsung, unmourned, undescribed,
like a forest we never knew.
You are the deep innerness of all things,
the last word that can never be spoken.
To each of us you reveal yourself differently:
to the ship as coastline, to the shore as a ship.
( beloved Rainer Maria Rilke, The Book of Pilgrimage)
Um obrigada ao ser que me ficou com As Elegias de Duíno. É preciso agradecer também há criatura que tem o livro de Whitman.
I wake to sleep
I wake to sleep, and take my waking slow.
I feel my fate in what I cannot fear.
I learn by going where I have to go.
We think by feeling. What is there to know?
I hear my being dance from ear to ear.
I wake to sleep, and take my waking slow.
Of those so close beside me, which are you?
God bless the Ground! I shall walk softly there,
And learn by going where I have to go.
Light takes the Tree; but who can tell us how?
The lowly worm climbs up a winding stair;
I wake to sleep, and take my waking slow.
Great Nature has another thing to do
To you and me, so take the lively air,
And, lovely, learn by going where to go.
This shaking keeps me steady. I should know.
What falls away is always. And is near.
I wake to sleep, and take my waking slow.
I learn by going where I have to go.
I feel my fate in what I cannot fear.
I learn by going where I have to go.
We think by feeling. What is there to know?
I hear my being dance from ear to ear.
I wake to sleep, and take my waking slow.
Of those so close beside me, which are you?
God bless the Ground! I shall walk softly there,
And learn by going where I have to go.
Light takes the Tree; but who can tell us how?
The lowly worm climbs up a winding stair;
I wake to sleep, and take my waking slow.
Great Nature has another thing to do
To you and me, so take the lively air,
And, lovely, learn by going where to go.
This shaking keeps me steady. I should know.
What falls away is always. And is near.
I wake to sleep, and take my waking slow.
I learn by going where I have to go.
(Theodore Roethke, The Waking )
Também acordo para me propor a fazer coisas estúpidas e impossíveis.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
domingo, 19 de dezembro de 2010
Only you and I, understand
You are tired,
(I think)
Of the always puzzle of living and doing;
And so am I.
Come with me, then,
And we’ll leave it far and far away—
(Only you and I, understand!)
You have played,
(I think)
And broke the toys you were fondest of,
And are a little tired now;
Tired of things that break, and—
Just tired.
So am I.
But I come with a dream in my eyes tonight,
And I knock with a rose at the hopeless gate of your heart—
Open to me!
For I will show you places Nobody knows,
And, if you like,
The perfect places of Sleep.
Ah, come with me!
I’ll blow you that wonderful bubble, the moon,
That floats forever and a day;
I’ll sing you the jacinth song
Of the probable stars;
I will attempt the unstartled steppes of dream,
Until I find the Only Flower,
Which shall keep (I think) your little heart
While the moon comes out of the sea.
(e.e. cummings)
Bof
(I think)
Of the always puzzle of living and doing;
And so am I.
Come with me, then,
And we’ll leave it far and far away—
(Only you and I, understand!)
You have played,
(I think)
And broke the toys you were fondest of,
And are a little tired now;
Tired of things that break, and—
Just tired.
So am I.
But I come with a dream in my eyes tonight,
And I knock with a rose at the hopeless gate of your heart—
Open to me!
For I will show you places Nobody knows,
And, if you like,
The perfect places of Sleep.
Ah, come with me!
I’ll blow you that wonderful bubble, the moon,
That floats forever and a day;
I’ll sing you the jacinth song
Of the probable stars;
I will attempt the unstartled steppes of dream,
Until I find the Only Flower,
Which shall keep (I think) your little heart
While the moon comes out of the sea.
(e.e. cummings)
Juro que isto não é um dilema nocturno. Também juro que me apetece parar, porque estou cansada e porque não há um eu e ele. (e um ele e eu) (ou um eu e eu) com ou sem parêntesis.
Bof
The souls of dead animals
after the slaughterhouse
there was a bar around the corner
and I sat in there
and watched the sun go down
through the window,
a window that overlooked a lot
full of tall dry weeds.
I never showered with the boys at the
plant
after work
so I smelled of sweat and
blood.
the smell of sweat lessens after a while
but the blood-smell begins to fulminate
and gain power.
I smoked cigarettes and drank beer
until I felt good enough to
board the bus
with the souls of all those dead
animals riding with
me;
heads would turn slightly
women would rise and move away from
me.
when I got off the bus
I only had a block to walk
and one stairway up to my
room
where I'd turn on my radio and
light a cigarette
and nobody minded me
at all.
(Charles Bukowski)
there was a bar around the corner
and I sat in there
and watched the sun go down
through the window,
a window that overlooked a lot
full of tall dry weeds.
I never showered with the boys at the
plant
after work
so I smelled of sweat and
blood.
the smell of sweat lessens after a while
but the blood-smell begins to fulminate
and gain power.
I smoked cigarettes and drank beer
until I felt good enough to
board the bus
with the souls of all those dead
animals riding with
me;
heads would turn slightly
women would rise and move away from
me.
when I got off the bus
I only had a block to walk
and one stairway up to my
room
where I'd turn on my radio and
light a cigarette
and nobody minded me
at all.
sábado, 18 de dezembro de 2010
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Profético e com voluptuosidade
HAMM - Em minha casa. (Pausa. Profético e com voluptuosidade.) Um dia vais ficar cego. Como eu. Ficarás sentado em qualquer parte, pequena plenitude perdida no vácuo, para sempre, na obscuridade. Como eu. (Pausa.) Um dia pensarás: Estou cansado, vou sentar-me, e vais sentar-te. Depois pensarás: Tenho fome, vou pôr-me de pé e fazer qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé. Pensas: Fiz mal em sentar-me, mas como me sentei, vou ficar sentado ainda um bocado, depois ponho-me de pé e faço qualquer coisa para comer. Mas não te pões de pé e não fazes nada para comer. (Pausa.) Olhas durante um bocado para a parede e depois dizes: Vou fechar os olhos, vou talvez dormir um pouco, depois tudo vai correr melhor, e vais fechá-los. E quando os voltares a abrir já não haverá parede. (Pausa.) O infinito do vácuo rodear-te-á, todos os mortos de todos os tempos ressuscitados não o encherão, e tu serás como uma pequena pedra no meio da estepe. (Pausa.) Sim, um dia saberás o que é isto, serás como eu, excepto que tu não terás ninguém, porque não terás tido piedade de ninguém e já não haverá ninguém de quem ter piedade.
Pausa.
CLOV - Isto não está dito. (Pausa.) E depois esqueceste de uma coisa.
HAMM - Ah.
CLOV - Não posso sentar-me.
HAMM (impaciente) - Pois bem, deitar-te-ás, não tem importância. Ou simplesmente vais parar, ficarás de pé como agora. Um dia pensarás: Estou cansado, vou parar. Que importa a posição?
Pausa.
(Samuel Beckett, Fim de Partida)
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
The Face of Another
Influência nociva
Poder-se-á dizer que certa influência é nociva só porque nos rebelamos contra ela?
Tinha perguntado Ruy Belo acerca de Breton. Tinha também dado a resposta. E eu, passado quase dois meses, pego na mesma pergunta por responder. É sempre tudo sobre mim. Sim, é. Não é assim com toda gente?
Sempre achei que a família servia apenas para o individuo se desintegrar. O objectivo é engrandecer a estranheza para criar o ser estranho, é dissolver essa coisa chamada família.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Comme le jour dépend de tes yeux purs
La courbe de tes yeux fait le tour de mon coeur,
Un rond de danse et de douceur,
Auréole du temps, berceau nocturne et sûr,
Et si je ne sais plus tout ce que j'ai vécu
C'est que tes yeux ne m'ont pas toujours vu.
Feuilles de jour et mousse de rosée,
Roseaux du vent, sourires parfumés,
Ailes couvrant le monde de lumière,
Bateaux chargés du ciel et de la mer,
Chasseurs des bruits et sources des couleurs
Parfums éclos d'une couvée d'aurores
Qui gît toujours sur la paille des astres,
Comme le jour dépend de tes yeux purs
Et tout monde sang coule dans leurs regards.
(Paul Éluard, Capitale de la douleur)
sábado, 11 de dezembro de 2010
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
||||||
Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro
onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.
Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos
que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa
e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro
onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.
Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos
que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa
e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.
(Maria do Rosário Pedreira)
Uma insónia disfarçada de poema. Um poema disfarçado de ti. Tu disfarçado de ferida. Ferida dentro de mim.
Não vale a pena esperar.
Ele era uma coisa frágil fora de mim.
Agora é só uma cicatriz.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
A imagem de um homem
(...) o mais belo monumento continua a ser o próprio retrato do homem. Ele dá, melhor do que qualquer outra coisa, uma ideia daquilo que ele foi: é o melhor texto, que se presta tanto para muitas, como para poucas notas. Só que teria de ser feito também na sua melhor idade, o que vulgarmente se negligencia. Ninguém pensa em conservar formas vivas e, quando tal sucede, é sempre de forma insatisfatória. Apressam-se, então, a tirar os moldes de um morto, coloca-se esta máscara sobre um bloco e a isso chama-se um busto. Como é raro um artista ser capaz de lhe restituir por completo a vida!
– Talvez sem saber e sem querer – respondeu Charlotte –, haveis encaminhado esta conversa em meu favor. A imagem de um homem é, no fundo, completamente autónoma; onde quer que ela se encontre, existe por si própria, e não vamos exigir dela que assinale, de facto, o local da sepultura. Mas quereis que vos confesse um sentimento estranho? Até mesmo contra os retratos tenho uma espécie de aversão, pois eles parecem fazer-me sempre uma censura silenciosa: apontam para algo de longínquo, algo que deixou de existir e lembram-me como é difícil honrar devidamente o presente. Se pensarmos na quantidade de pessoas que vimos e conhecemos, e se confessarmos a nós próprios como significámos pouco para elas, como elas significaram pouco para nós – como não nos sentiremos? Encontramos o homem de espírito sem conversarmos com ele, o homem de saber sem aprendermos com ele, o homem viajado sem ouvirmos o que ele nos tem a dizer, o homem sensível sem lhe demonstrarmos o nosso agrado. (...)
Ouvi perguntar porque razão se diz tanto bem dos mortos, sem quaisquer reservas, e dos vivos, sempre com uma certa prudência. A resposta foi: porque dos primeiros nada temos a temer, enquanto estes últimos podem, em qualquer parte, atravessar-se ainda no nosso caminho. Tão impura é a nossa preocupação com a memória dos outros; não passa, em geral, de um divertimento egoísta, embora devesse ser uma preocupação sagrada e séria o manter viva e activa a nossa relação com os que restam.
Ser má pessoa não me permite manter viva e activa a relação que tenho com os outros. Os outros, que são restos. Que sabem a restos. E soam a restos.
Não gosto de restos. Nem de conjuntivites que só tornam as coisas mais vermelhas e acentuam o meu ar miserável.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Um triste talento
Oh!, não me envergonho desta dependência, deste, se quiser, amor insensato, delirante. Não, nunca amei. Só agora aprendo o que isso significa. Até aqui, tudo na minha vida não passou de um prelúdio, de uma espera, de um passatempo, de um desperdício de tempo, até que a conheci, até que eu a amei, amei de todo o meu coração. Censuraram-me, não na minha frente, mas pelas costas, de quase tudo onde ponho as mãos sair atabalhoado e imperfeito. É possível, mas não tinha tido ainda ocasião de mostrar a minha mestria. Quero ver quem é que me ultrapassa no talento de amar.
É, sem dúvida, um triste talento, pleno de dores e de lágrimas; mas acho que este talento faz tanto parte da minha natureza, me é tão próprio, que dificilmente voltarei a renunciar a ele.
(J.W. Goethe, As Afinidades Electivas)
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Suna no Onna
(Suna no Onna, Hiroshi Teshigahara, 1964)
1. Pego no livro de Abe Kōbō ou no filme de Teshigahara e comparo-o com O mito de Sísifio de Camus.
2. Faço um trabalho qualquer sobre uma coisa-qualquer-sem-interesse.
3. Pego na triologia de Teshigahara, nos livros de Abe e em Camus, Kafka, Kierkegaard, Sartre e quem mais for preciso e faço um trabalho espectacular.
4. Acabo com Macau e com todas as coisas que impliquem relações luso-chinesas.
5. Estou ansiosa e com falta de tempo (constatação)
6. Macau aborrece-me profundamente e as relações luso-chinesas também (dupla constatação)
6. Macau aborrece-me profundamente e as relações luso-chinesas também (dupla constatação)
domingo, 5 de dezembro de 2010
Estas coisas estão no futuro
Agora, meu caro amigo, agora, pelos seus pecados, vai padecer o suplício de uma longa carta cheia de palavreado. Digo-lhe claramente que o vou castigar por todas as suas impertinências, por ser tão enfadonho, tão divagador, tão incoerente e tão inadequado quanto é possível. Além disso, eis-me aqui, encafuada num sujo balão, com uma ou duas centenas de passageiros pertencentes à canaille, todos eles em viagem de prazer (que engraçada concepção certas pessoas têm do prazer!), sem expectativas de tocar terra firme pelos menos durante um mês. Ninguém com quem falar. Nada para fazer. Quando a pessoas não tem nada que fazer, está na altura de se corresponder com os amigos. Compreenderá, portanto, por que razão lhe escrevo esta carta: por causa do meu ennui e dos seus pecados.
Ponha os óculos e prepare-se para suportar o aborrecimento. Tenciono escrever-lhe todos os dias durante esta odiosa viagem.
(Edgar Allan Poe, Mellonta Tauta)
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
||||
Anoto no caderno: esta noite falaremos sobre uma paixão. Que mais faremos com os corpos?
(Al Berto)
(Al Berto)
Não sei o que lhes faremos. Mas sei que os meus dedos estão bailarinos e que o teclado ressuscitou. Talvez eles falem de ti ou da paixão.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Haverá outro nome para o lugar onde não há lembranças de ti?
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembranças de ti?
(Eugénio de Andrade, O outro nome da terra)
Escrevo: escrevo-te. Penso: penso-te. Leio: leio-te. Este poema sabe tanto a ti e à tua ausência. Hoje dóis-me.
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