(...)
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
(Mário Cesariny, Pena Capital)
sexta-feira, 29 de julho de 2011
quinta-feira, 28 de julho de 2011
antero
se conseguires meter 3 balas na cabeça encontrarás
a síntese que procuras
«o amigo de antero», (inédito)
a primeira bala na cabeça: a Tese
a segunda na garganta: a Antítese
a terrível determinação de extermínio
não conseguiu inteira a cessação imediata da vida
fero só contra a Ideia, e Voz que a moldava
agonizou realmente como um Santo
(ganhando o que era, aos poucos)
enquanto a Caixa de Pensar saía
de mistura com a Lógica e um pêlo de poeta
que caiu no parterre e encaracolou
liberto de Proudhon Hegel e Kant
«Deixá-la VIR, a Vida...»
(Mário Cesariny, primavera autónoma das estradas)
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Famous Blue Raincoat
what can I tell you
my brother my killer
what can I possibly say
I guess that I miss you
I guess I forgive you
I'm glad you stood in my way
domingo, 24 de julho de 2011
sexta-feira, 22 de julho de 2011
A imagem do poeta morto |
(desenho feito por Teixeira de Pascoaes)
Teixeira de Pascoaes, «desiludido, quase esquelético», como ele dizia, e quase esquecido, acrescento eu, morreu na noite de 14 de Dezembro de 1952, e tão serenamente que a família que o rodeava esperou ainda que ele voltasse a respirar. Mas não. O «pobre Joaquim» estava morto. Entrou na morte com a mesma simplicidade com que entrava em casa. A partir daquela noite era ao calor de um outro sol que aquecia as mãos e a melancolia.
A sua morte era esperada. Sobretudo a esperavam aquela meia-dúzia de amigos que o viram sair, cerca de quinze dias antes, de uma casa de saúde do Porto, para entrar na ambulância que o levaria à Casa de Pascoaes. A São João de Gatão, como ele gostava de dizer. Era já uma sombra do que fora, os olhos apagados mal se abriam, as mãos quase não podiam com o gesto, e até algumas pessoas de família deixara de reconhecer. O fim chegara, embora o corpo permanecesse ainda vivo. Durante os cinco dias que ali estive, o delírio e o torpor foram o seu pão e o seu vinho. Contudo, ao chegar a casa ainda a reconheceu, e alegrou-se. Mas vinha ferido de morte. E a morte veio sem que ele desse por isso. Com tudo o mais que se seguiu já Pascoaes nada teria a ver. Nem ele, nem eu.
Queria despegar de mim a imagem do poeta morto. Não é esse o meu Pascoaes. O Pascoaes que eu conheci, já velho, é certo, era magnífico e luminoso: espontâneo e simples com as crianças, mas também terrível e acusador como um profeta do Velho Testamento. A sua presença era inquieta e feliz, não deixando nada em sossego, em nome da verdade. A mentira era para ele o maior dos pecados.
- Eu devo ter-me enganado muitas vezes, mas nunca menti - disse-me ele no nosso primeiro encontro. Já lá vão uns anos. Pascoaes viera esperar-nos ao caminho. Com um abraço, porque ele abraçava toda a gente. Mostrava o seu Marão, cintava como lá descobrira aquele anel de ferro que trazia no dedo (e levaria para a morte), lamentava que não houvesse neve. (Estava um dia de primavera naquele inverno, lembras-te, Ernesto? Lembras-te, Eduardo?)
Eu olhava-o deslumbrado. No primeiro momento Pascoes pareceu-me velho, muito mais velho do que eu imaginara. Nunca o vira antes e apenas o conhecia de antigos retratos. Mas essa impressão desfez-se logo: ele era vida prodigiosa, ímpeto, espaço aberto. Sobretudo diante do Marão.
- Os poetas - dizia - precisavam todos de uma casa assim. É verdade!, veja lá a sorte que eu tive em nascer numa casa destas!
(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940*1980])
Desconstrução de um poema de Eugénio
Falei-te de tudo quanto amei
para que tu amasses todas as coisas comigo.
Mas os dias correm,
sem palavras.
Sonhei-te para permanecer no teu abraço prolongado.
para que tu amasses todas as coisas comigo.
Mas os dias correm,
sem palavras.
Sonhei-te para permanecer no teu abraço prolongado.
Mas o dia amanhece,
espesso,
cansado e vazio.
É preciso acordar.
Mas nesta roda
todas as palavras são cegas e mudas
e tu um corpo distante e adormecido.
espesso,
cansado e vazio.
É preciso acordar.
Mas nesta roda
todas as palavras são cegas e mudas
e tu um corpo distante e adormecido.
Tragic fate of a prostitute
Every night and day she walks the streets, forcing herself to smile.
Ruan (阮玲玉), é uma deusa (神女). É uma deusa e uma prostituta (outro dos significados para 神女). Mas onde quero chegar é que esta mulher, que todas as noites mente sorrindo, me faz crer que todos nós, deuses nesta vida ou não, somos certamente umas prostitutas. Fingimos tão perfeitamente como ela. Ela, Ruan, cujo destino é trágico não só no filme como na vida, morre cedo. 24 anos. É uma suicidada da vida, como diria o senhor poeta.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Un corazon solitario
no es un corazón.
(António Machado)
no es un corazón.
(António Machado)
Falei-te de tudo quanto amei, para que tu amasses todas as coisas comigo. Mas os dias correm, sem palavras. Sonhei-te, para permanecer no teu abraço prolongado. Mas o dia amanhece, espesso, cansado e vazio. E nesta roda todas as palavras são cegas e mudas e tu um corpo distante. Pende apenas uma silaba espessa sobre nós.
quarta-feira, 20 de julho de 2011
Dada á la Mexicana
GIVE IT ALL UP AGAIN
first infrarealist manifesto
“It’s four light hours to the confines of the solar system; to the closest star, four light years. A disproportionate ocean of emptiness. But are we really sure there is only a void? We only know that there are no stars shining in that space. If they existed, would they be visible? And if there existed bodies that are neither luminous nor dark? Could it not be that on the celestial maps, the same as on those of Earth, the star-cities are indicated and the star-villages are omitted?”
— Soviet science fiction writers scratching their faces at midnight.
— The infrasuns (Drummond would say the happy proletarian fellows).
— Peguero and Boris alone in a lumpen room having premonitions of the wonder behind the door.
— Free money.
*
Who has crossed the city and had, as the only music, the whistles of his fellow man, his own words of wonder and rage?
The handsome guy who didn’t know
that chicks’ orgasms are clitoral
(Look around, shit isn’t just in museums.) (A process of individual museumification.) (Certainty that everything is named, revealed.) (Fear of discovering.) (Fear of unforeseen imbalances.)
*
Our closest relatives:
snipers, country boys who smash up cheap cafés in Latin America, people who fall apart in supermarkets in their tremendous individuo-collective dilemmas; the impotence of action and the search (on individual levels or good and muddy with aesthetic contradictions) for poetic action.
*
Little bright stars eternally winking an eye at us from a place in the universe called Labyrinths.
— Nightclub of misery.
— Pepito Tequila sobbing his love for Lisa Underground.
— I suck it, you suck it, we suck it.
— And the Horror.
*
Curtains of water, cement or tin separate a cultural machinery that serves as the conscience or the ass of the dominant class from a living, annoying cultural happening, in constant death and birth, ignorant of the greater part of history and the fine arts (everyday creator of its insane history and its hallucinatory fine artz), body that suddenly feels new sensations in itself, product of an epoch in which we approach the shithouse or the revolution at 200 kph.
“New forms, strange forms,” as old Bertolt said, half curious, half cheerful.
*
Sensations don’t arise from nothingness (the obvious of obviousnesses) but from conditioned reality, in a thousand ways, as a constant flow.
— Multiple reality, you make us sick!
So it is possible that on the one hand one is born and on the other hand we’re in the front row for the death throes. Forms of life and forms of death pass daily through the retina. The constant crash gives life to infrarealist forms: THE EYE OF TRANSITION
*
They put the whole city in the nuthouse. Sweet sister, tank howls, hermaphrodite songs, diamond deserts, we’ll live only once and the visions, more complicated and slippery every day. Sweet sister, hitchhiking to Monte Albán[i]. Unbuckling their belts to water the corpses. It’s something at least.
*
And the good bourgeois culture? And academia and the arsonists? And the vanguard and its rearguard? And certain conceptions of love, nice scenery, the precise multinational Colt sidearm?
Like Saint-Just[ii] said to me in a dream I had a while ago: Even the heads of aristocrats can be our weapons.
*
— A good part of the world is being born and the other part is dying and we all know that we all have to live and we all die: in this there is no middle road.
Chirico[iii] says: thought needs to move away from everything called logic and common sense, to move away from all human obstacles in such a way that things take on a new look, as though illuminated by a constellation appearing for the first time. The infrarealists say: We’re going to stick our noses into all human obstacles, in such a way that things begin to move inside of us, a hallucinatory vision of mankind.
— The Constellation of the Beautiful Bird.
— The infrarealists propose Indianism to the world: a crazy, timid Indian.
— A new lyricism that’s beginning to grow in Latin America sustains itself in ways that never cease to amaze us. The entrance to the work is the entrance to adventure: the poem as a journey and the poet as a hero who reveals heroes. Tenderness as an exercise in speed. Respiration and heat. Experience shot, structures that devour themselves, insane contradictions.
The poet is interfering, the reader will have to interfere for himself.
“erotic books full of misspellings”
*
The THOUSAND DRAWN-AND-QUARTERED VANGUARDS OF THE SEVENTIES are our ancestors
99 flowers open like an open head
Slaughters, new concentration camps
White subterranean rivers, violet winds
These are hard times for poetry, some say, sipping tea, listening to music in their apartments, talking (listening) to the old masters. These are hard times for mankind, we say, coming back to the barricades after a workday full of shit and tear gas, discovering/creating music even in apartments, spending all day watching the cemeteries-that-expand, where they hopelessly drink a cup of tea or get drunk on pure rage or the inertia of the old masters.
HORA ZERO[iv] are our ancestors
((Raise arsonist kids, get burned))
We’re still in the Quaternary Period. We’re still in the Quaternary Period?
Pepito Tequila kisses the phosphorescent nipples of Lisa Underground and heads off for a beach where black pyramids sprout up.
*
I repeat:
The poet as a hero who reveals heroes, like the fallen red tree that announces the start of a forest.
— Attempts at an ethic-aesthetic are paved with betrayals or pathetic survivals.
— And it is the individual who could walk a thousand kilometers but inevitably the road will eat him.
— Our ethic is the Revolution, our aesthetic is Life: one-and-the-same.
*
For the bourgeoisie and the petite-bourgeoisie, life is a party. They have one every weekend. The proletariat doesn’t have parties. Just funerals with rhythm. That’s going to change. The exploited are going to throw a big party. Memory and guillotines. Sensing it, acting it out oncertain nights, inventing edges and humid corners for it, like caressing the acid eyes of the new spirit.
*
Movement of the poem through the seasons of rebellion: poetry producing poets producing poems producing poetry. No electric alley/the poet with his arms separated from his body/the poem moving slowly from his Vision to his Revolution. The alley is a complex point. “We’re going to invent it so as to discover its contradiction, its invisible forms of negation, even to clarify it.” A journey of the act of writing through zones not at all favorable to the act of writing.
Rimbaud, come home!
Subvert the everyday reality of modern poetry. The chains that lead to the poem’s circular reality. A good reference: Kurt Schwitters. Lanke trr gll, or, upa kupa arggg, happens in the official line, phonetic investigators encoding the howl. The bridges of Nova Express are anti-codifying: let him scream, let him scream (please don’t go pulling out pencils or little notebooks, don’t record it, if you want to participate scream along), so let him scream, to see the look on his face when it’s over, what incredible thing happen to us.
Our bridges to unknown seasons. The poem interrelating reality and unreality.
*
Convulsively.
*
What can I ask of present-day Latin American painting? What can I ask of the theater?
It is more revealing and more evocative to stand in a park devastated by smog and watch people cross the avenues in groups (that contract and expand), the avenues, where drivers as much as pedestrians feel the urge to return to their hovels, when the murderers come out and the victims stalk them.
What stories are painters really telling me?
The interesting void, fixed form and color, at best a parody of movement. Canvases that will serve only as bright advertisements in the rooms of engineers and doctors who collect them.
The painter adapts to a society that is every day more of a “painter” than he is, and there he finds himself disarmed and registers as clown.
If painting X is found in some street by Mara, that painting acquires the status of an amusing, communicative thing; in a salon it’s as decorative as bourgeois wrought iron garden chairs/a question of the retina?/yes and no/but it’d be better to find (and systematize according to chance for awhile) the unleashing factor, class-conscious, a one hundred percent deliberate deed, in juxtaposition to the values of “work” which both precede and condition it.
The painter gives up his studio and ANY status quo and fills his head with wonder/or takes up chess like Duchamp/a self-taught painting/And a painting of poverty, free or rather cheap, unfinished, collaborative, of questioning participation, physically extended and spiritually unlimited.
The best Latin American painting is that which is still being made at unconscious levels, the game, the party, the experiment that gives us a real vision of what we are and opens us to what we can be; the best Latin American painting is what we paint in the greens, reds, and blues on our faces, to recognize ourselves in the incessant creation of the group.
*
Try daily to leave everything behind.
May architects give up the building of inward-looking scenes and open their hands (or make fists, depending on the place) toward that outer space. A wall and a roof acquire utility not when they’re used just for sleeping or avoiding rain, but rather when they establish, for example, from the everyday act of dreaming, conscious bridges between man and his creations or the momentary impossibility of these.
In architecture and sculpture the infrarealists start from two points: the barricade and the bed.
*
The true imagination is that which destroys, elucidates, injects emerald microbes into other imaginations. In poetry and in whatever else, the entrance into the work has to already be the way into adventure. Create the tools for everyday subversion. The human being’s subjective seasons, with their gigantic, beautiful, obscene trees like experimental laboratories. Watch, glimpse parallel and heart-rending situations as a giant scratch on your chest, on your face. Endless analogy of gestures. There are so many that when new ones appear we don’t even notice, even though we’re making/watching them in front of a mirror. Stormy nights. Perception opens by means of an ethic-aesthetic carried to the limit.
*
— Galaxies of love are appearing in the palms of our hands.
— Poets, let down your hair (if you have any)
— Burn your nonsense and start loving until you come up with priceless poems
— We don’t want kinetic paintings but enormous kinetic sunsets
— Horses running 500 kilometers an hour
— Squirrels of fire hopping through trees of fire
— A bet to see who blinks first, between the nerve and the sleeping pill.
*
Risk is always somewhere else. The true poet is the one who’s always letting go of himself. Never too much time in the same place, like guerrillas, like UFOs, like the white eyes of prisoners serving life sentences.
*
Fusion and explosion from two shores: creation like a decisive and open graffiti by a crazy kid.
Not at all mechanical. Scales of amazement. Somebody, maybe Bosch, smashes the aquarium of love. Free money. Sweet sister. Visions frivolous like corpses. Little boys jerking off from kisses until December.
*
At two in the morning, after having been at Mara’s house, we (Mario Santiago and some of us) heard laughter coming from the penthouse of a 9 story building. They didn’t stop, they kept laughing and laughing while below we slept propped up in various phone booths. There came a moment when only Mario was still paying attention to the laughter (the penthouse is a gay bar or something and Darío Galicia had told us that it’s always watched by the cops). We made phone calls but our coins turned into water. The laughter continued. After we left that neighborhood Mario told me that actually no one had been laughing, that it was recorded laughter, and up there in that penthouse, some stragglers or maybe a single homosexual had silently listened to that record and made us listen to it.
— The death of the swan, the swan song, the last song of the black swan, IS NOT in the Bolshoi but in the intolerable pain and beauty of the streets.
— A rainbow that starts in a grindhouse theater and ends in a factory on strike.
— May amnesia never kiss us on the mouth. May it never kiss us.
— We dreamed of utopia and woke up screaming.
— A poor lonely cowboy that comes back home, what a wonder.
*
Make new sensations appear—Subvert daily life.
O.K.
GIVE IT ALL UP AGAIN
HIT THE ROAD
(Roberto Bolaño, Mexico, 1976, Tim Pilcher(trad.), daqui)
terça-feira, 19 de julho de 2011
Explicação fragmentada sobre estrelas
1. Um buraco negro é simplesmente uma estrela que não aguentou a força da gravidade e caiu sobre si mesma.
2. O chão mantém-nos aqui, à superfície.
3. Existem estrelas onde a massa é tão grande que a gravidade ganha a tudo, incluindo essa força que o chão exerce sobre nós. Então, a estrela afunda-se e fica cada vez mais pequena. Contrai-se tanto, que nem sequer luz consegue sair dessa estrela.
(do senhor cientista Vitor Cardoso, que falando de estrelas me prendeu a atenção)
segunda-feira, 18 de julho de 2011
domingo, 17 de julho de 2011
Provérbio cinematográfico
Já o meu pai dizia que quem falha o primeiro amor vai a pé coxinho para a vida.
sexta-feira, 15 de julho de 2011
Um nada que dói
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...
(Álvaro de Campos, do Arquivo Pessoa)
Caro Pessoa, o seu heterónimo é demasiado difícil de compreender, dizem-me as notícias. Também me dizem, há muito tempo, que a língua está em morte lenta. Uma pena, como pode ver.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Da Adília
Amar uma pedra, um cão, uma osga, uma barata.
Amar uma pessoa que não gosta de nós.
Amar uma pessoa de quem não gostamos.
O amor é mais difícil que a mecânica quântica.
Fernando Pessoa, num poema em que caridade rima
com electricidade, diz que não tem caridade.
Às vezes, aquilo a que chamamos amor não é amor:
- é exigir amor em troca
- é dar para que dês
Amar alguém é confiar nessa pessoa, não estar de pé atrás, acreditar nessa pessoa. Gostamos pouco uns dos outros, disse Tonino Guerra.
Querer amar e ser amado, dizia Jorge Luis Borges, é muito ambicioso, não é humilde.
Acho que devemos pedir só para amar.
É fácil amar quando a vida nos corre bem.
Quando a vida nos corre mal, insultamos o mundo e, às vezes, insultamos Deus. Acreditar então nas coisas mais queridas, mais pequeninas:
- as medalhinhas do nosso Baptismo, que entretanto foram roubadas, se perderam.
- a imagem de Nossa Senhora de Fátima comprada na loja dos 300.
- dois versos de uma oração de que esquecemos o resto.
Às vezes, a vida corre-nos muito bem e esquecemo-nos da compaixão. A compaixão é o amor. Só a compaixão salva. Só a compaixão é eterna.
O sofrimento nem sempre se vê. E o sucesso, como o desespero, pode cegar.
Às vezes, temos grandes amigos e não sabemos. A padeira do nosso bairro, o vizinho do nosso prédio. Anos e anos a dizer:”Bom-dia! Boa-tarde!", mais nada, e essas palavras bastaram.
O amor nem precisa de palavras. Mas as palavras sabem bem.
(Adília Lopes, surripiado por aí)
É por isso, meu caro, que não há amor. Porque se não me deixas dar-te palavras e não tens palavras para me dar, é igual a nada.
terça-feira, 12 de julho de 2011
A Morte de Empédocles
Ó coração que tudo sacrifica! E este entrega
Por amor a mim a dourada juventude!
E eu? Ó Terra e Céu! Olha! Ainda
Estás perto, enquanto a hora escoa,
E para mim floresces, ó alegria dos meus olhos.
Ainda tudo é como dantes, tomo-te nos braços
Como se fosses meu, a minha presa,
E de novo me seduz o sonho encantador.
Sim, magnífico seria entrar na chama do túmulo
De braço dado e não como um solitário
Formando um par festivo no final do dia;
E de bom grado levaria comigo, como um nobre rio
Todas as suas fontes, em libação à noite sagrada,
O que aqui amei.
(Friedrich Holderlin, A Morte de Empédocles, Maria Teresa Dias Furtado (trad.))
Por amor a mim a dourada juventude!
E eu? Ó Terra e Céu! Olha! Ainda
Estás perto, enquanto a hora escoa,
E para mim floresces, ó alegria dos meus olhos.
Ainda tudo é como dantes, tomo-te nos braços
Como se fosses meu, a minha presa,
E de novo me seduz o sonho encantador.
Sim, magnífico seria entrar na chama do túmulo
De braço dado e não como um solitário
Formando um par festivo no final do dia;
E de bom grado levaria comigo, como um nobre rio
Todas as suas fontes, em libação à noite sagrada,
O que aqui amei.
(Friedrich Holderlin, A Morte de Empédocles, Maria Teresa Dias Furtado (trad.))
domingo, 10 de julho de 2011
A lenta volúpia de cair
sobre vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
(Luiza Neto Jorge, Poesia)
O poema não ensina a atravessar o Domingo, de quem tem feridas no peito e negrume no coração. Quem cai de amor rapidamente atinge o chão. Ao Domingo, a dor da tua ausência fere ainda mais do que há semana. Amo-te aos bocados, em part-time, para doer devagar e prolongar o (des)amor. Amanhã, é uma ferida lenta que morre e não mata. Estarei de face voltada para chão a ignorar a tua ausência.
Poème
- Não chores homem não chores
que te vão envergonhar
Água que sai dos teus olhos
ninguém na pode apagar
(Mário Cesariny, Pena Capital)
A Medula da Alma
Para poder encontrar-me a mim mesmo, tive primeiro de me perder. Tive de chegar ao pleno vazio de mim. Não foi um vazio imóvel, um compasso de espera na dança do ser: o meu vazio foi um rodopiar imparável de dinâmica negativa, de tal forma que desistir surgiu, por fim, como premente solução lógica para acabar de vez com o tormento daquele exercício giratório. Tinha dezanove anos. A minha vida, para todos os efeitos, mal começara. Mas antes mesmo de ter podido pisar-lhe o palco parecia ter chegado já o momento de fechar o pano. A tragédia grega antiga ensina que "o amor não deve atingir a medula da alma". Mas na vida de alguns de nós, de preferência uma única e irrepetível vez, a medula da é alma atingida pelo amor. Felizes os que sobrevivem.
O mais insólito no amor de caixão à cova é a percepção alterada que proporciona de nós mesmos. Se os primeiros dias são de felicidade com a qual nada há que se compare - os ouvidos a zunir, a sensação de que o coração no peito duplicou de tamanho, a visão deslumbrada a dotar tudo o que há de mais corriqueiro de indefiníveis segundos e terceiros sentidos -, chega depois o momento em que nos apercebemos do preço que tivemos de pagar.
(Frederico Lourenço, A formosa pintura do mundo)
sábado, 9 de julho de 2011
A «Mona Lisa» da literatura
"E provavelmente mais pessoas consideraram Hamlet uma obra de arte porque a acharam interessante, do que a acharam interessante porque é uma obra de arte. É a «Mona Lisa» da literatura."
(T.S. Eliot, Ensaios Escolhidos, Hamlet (1919), Maria Adelaide Ramos (trad.))
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Sylvia Plath a Ted Hughes
Dobra bem os versos por baixo do colchão,
estica a pele até ao ponto de rasgar.
Depois areja os nervos, os músculos,
tudo o que puderes fazer sair de dentro do corpo.
E com as palmas das mãos inscreve
a ansiedade que te escorre dos poros
neste espelho de cambraia quase invisível.
Tenho uma flor à tua espera, uma ferida
nos sulcos do meu ventre. Vem regá-la,
colhê-la, faz com ela o arranjo da refeição
que agora termina e de novo começa.
estica a pele até ao ponto de rasgar.
Depois areja os nervos, os músculos,
tudo o que puderes fazer sair de dentro do corpo.
E com as palmas das mãos inscreve
a ansiedade que te escorre dos poros
neste espelho de cambraia quase invisível.
Tenho uma flor à tua espera, uma ferida
nos sulcos do meu ventre. Vem regá-la,
colhê-la, faz com ela o arranjo da refeição
que agora termina e de novo começa.
(henrique manuel bento fialho, A dança das feridas)
quarta-feira, 6 de julho de 2011
||
Na minha terra chamavam casa amarela à casa
onde guardavam os porcos. Por vezes, quando brincávamos
na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para
as grades escuras e silenciosas das janelas além e, com
o coração apertado, balbuciávamos: «Coitadinhos!...»
onde guardavam os porcos. Por vezes, quando brincávamos
na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para
as grades escuras e silenciosas das janelas além e, com
o coração apertado, balbuciávamos: «Coitadinhos!...»
Time to die
I've seen things you people wouldn't believe.
Attack ships on fire off the shoulder of Orion.
I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate.
All those moments will be lost in time, like tears in rain.
Time to die.
Attack ships on fire off the shoulder of Orion.
I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser gate.
All those moments will be lost in time, like tears in rain.
Time to die.
(Chorar no fim é isto, é isso que me apraz dizer. É de uma beleza pura.)
domingo, 3 de julho de 2011
Se um dia o meu coração
tornasse a amar outra vez
queria dizer-lhe que não
por todo o mal que que já fez
Se um dia esta alma vencida
voltasse a nascer em mim
preferia acabar com a vida
do que viver sempre assim
Se nesse dia fatal
pudesse encontrar alguém
cujo o olhar fosse um sinal
só meu e de mais ninguém
diria que estava louco
ou que perdi a razão
e tudo seria pouco
pra matar essa ilusão
Mas se entretanto a saudade
for mais forte do que eu
talvez me falte a vontade
de esquecer quem me esqueceu
e ficarei outra vez
nas mãos de quem não merece
como se o mal que me fez
fosse um bem que Deus me desse
(Fernando Pinto do Amaral)
tornasse a amar outra vez
queria dizer-lhe que não
por todo o mal que que já fez
Se um dia esta alma vencida
voltasse a nascer em mim
preferia acabar com a vida
do que viver sempre assim
Se nesse dia fatal
pudesse encontrar alguém
cujo o olhar fosse um sinal
só meu e de mais ninguém
diria que estava louco
ou que perdi a razão
e tudo seria pouco
pra matar essa ilusão
Mas se entretanto a saudade
for mais forte do que eu
talvez me falte a vontade
de esquecer quem me esqueceu
e ficarei outra vez
nas mãos de quem não merece
como se o mal que me fez
fosse um bem que Deus me desse
(Fernando Pinto do Amaral)
Dear Marguerite
sábado, 2 de julho de 2011
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1980])
És o cancro secreto.
Amor extinto.
Hoje.
Prolongado na dor.
Não quebraste o silêncio. Não quebraste. Não quebrei.
No fim, no fim dá-lhe este poema. Queda-se em silêncio, sentada no chão. E lamenta, lamenta a perda.
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940-1980])
És o cancro secreto.
Amor extinto.
Hoje.
Prolongado na dor.
Não quebraste o silêncio. Não quebraste. Não quebrei.
No fim, no fim dá-lhe este poema. Queda-se em silêncio, sentada no chão. E lamenta, lamenta a perda.
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