domingo, 25 de setembro de 2011

«Que dia? Que olhar?»

Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora
restavam papéis velhos, vidas mortas,
identidades, sujidade, eternidade.

Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e, pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobro, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.

Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar em aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Posmodenizar-me? Experienciar-me?

Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

«Que dia? Que olhar?»
(Beckett, «Dias felizes»)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma ponta (de uma forma)
com o - como dizer? - coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.


(Manuel António Pina, Os livros)

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