quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Esta bisca de três


Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Há momentos em que o caixão que passa às costas d'um galego me chama à realidade, ao espanto. Desvio logo o olhar, reentro à pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e esqueço. Toda a gente forceja por criar um atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a for revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e silêncio, teias de escuridão e de silêncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o hábito é que me fez suportar a vida. Ás vezes acordo com este grito: -A morte! a morde! - e debalde arredo o estúpido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida me pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplêndida é aborrecida e inútil! Não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. O tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas. Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. 

(Raul Brandão, Humus)

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