sexta-feira, 22 de julho de 2011

A imagem do poeta morto |

(desenho feito por Teixeira de Pascoaes)

Teixeira de Pascoaes, «desiludido, quase esquelético», como ele dizia, e quase esquecido, acrescento eu, morreu na noite de 14 de Dezembro de 1952, e tão serenamente que a família que o rodeava esperou ainda que ele voltasse a respirar. Mas não. O «pobre Joaquim» estava morto. Entrou na morte com a mesma simplicidade com que entrava em casa. A partir daquela noite era ao calor de um outro sol que aquecia as mãos e a melancolia. 
A sua morte era esperada. Sobretudo a esperavam aquela meia-dúzia de amigos que o viram sair, cerca de quinze dias antes, de uma casa de saúde do Porto, para entrar na ambulância que o levaria à Casa de Pascoaes. A São João de Gatão, como ele gostava de dizer. Era já uma sombra do que fora, os olhos apagados mal se abriam, as mãos quase não podiam com o gesto, e até algumas pessoas de família deixara de reconhecer. O fim chegara, embora o corpo permanecesse ainda vivo. Durante os cinco dias que ali estive, o delírio e o torpor foram o seu pão e o seu vinho. Contudo, ao chegar a casa ainda a reconheceu, e alegrou-se. Mas vinha ferido de morte. E a morte veio sem que ele desse por isso. Com tudo o mais que se seguiu já Pascoaes nada teria a ver. Nem ele, nem eu.
Queria despegar de mim a imagem do poeta morto. Não é esse o meu Pascoaes. O Pascoaes que eu conheci, já velho, é certo, era magnífico e luminoso: espontâneo e simples com as crianças, mas também terrível e acusador como um profeta do Velho Testamento. A sua presença era inquieta e feliz, não deixando nada em sossego, em nome da verdade. A mentira era para ele o maior dos pecados.
- Eu devo ter-me enganado muitas vezes, mas nunca menti - disse-me ele no nosso primeiro encontro. Já lá vão uns anos. Pascoaes viera esperar-nos ao caminho. Com um abraço, porque ele abraçava toda a gente. Mostrava o seu Marão, cintava como lá descobrira aquele anel de ferro que trazia no dedo (e levaria para a morte), lamentava que não houvesse neve. (Estava um dia de primavera naquele inverno, lembras-te, Ernesto? Lembras-te, Eduardo?)
Eu olhava-o deslumbrado. No primeiro momento Pascoes pareceu-me velho, muito mais velho do que eu imaginara. Nunca o vira antes e apenas o conhecia de antigos retratos. Mas essa impressão desfez-se logo: ele era vida prodigiosa, ímpeto, espaço aberto. Sobretudo diante do Marão.
- Os poetas - dizia - precisavam todos de uma casa assim. É verdade!, veja lá a sorte que eu tive em nascer numa casa destas!

(Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa [1940*1980])

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