AGRIFONTE
Dizia, amigo Hamlet, que os mortos estão como estamos nós: Também os vivos pouco diferem um dos outros e apenas se distinguem os que demonstram como um teorema. Mas, dizei: que é feito de Margarida?
HAMLET
Margarida? Que Margarida? A que se praz em tíbios prados ou a que infausta e abaritonada se desvaneceu nos teus braços?
AGRIFONTE
A que me ofereceu esta cigarreira. (Oferece um cigarro) Por bem, aceitai, fumai....
HAMLET
Muito obrigado.
AGRIFONTE
Plo Deus vivo, não o acendeis, ou sabereis quem eu sou.
HAMLET
Oh, Ontem mesmo vosso tio telegrafou dizendo-me que espécie de indivíduo sois.
AGRIFONTE
(Estranhando) Tio? Que tio? Tenho sete.
HAMLET
O oitavo, o mais documentado, o que bem a seu pesar não pôde dar-vos o ser.
AGRIFONTE
Plo Santo Nome, senhor, dizei então quem é o filho da mãe!
HAMLET
Pois aí vai, ainda que vos pese. Sois Dona Iracunda de Álvaro Meno mãe putativa da que em outros tempos conheceu diástoles incríveis.
AGRIFONTE
(Rebarbativo) Deixai vossos provérbios para depois e contemplai a vossa obra. (Hamlet olha na direcção apontada. Um espantoso quadro se lhe insinua. Num confortável ataúde jaz Mitríades decomposto e episcopal.)
MITRÍADES
(Encorporando-se) Oh, Hamlet! Oh, Agrifonte! Não mais vereis Margarida!
HAMLET E AGRIFONTE
Que dizeis, insensato, em tão horrenda putrefacção?
MITRÍADES
Margarida foi ao campo das interrogações. Quem ousa ir ao campo das interrogações nunca mais volta.
HAMLET E AGRIFONTE
Ah, fideputa velhaco! Vós também amais Margarida.
MITRÍADES
Eu? Não odeio nem amo. Mas ela será minha esposa entre as aladas sombras.
Hamlet e Agrifonte ardem em maquilhada ira.
Um sol vindicativo dardeja mil raios no horizonte.
As sombras dos três personagens
aparecem obstinadas e aplanadas
no deserto.
HAMLET E AGRIFONTE
Rufia, canalha, putrefacto, já vais ver!
Os dois açulam as suas sombras com à lebreus.
Estas, grandes aranhas negras, avançam até ao
féretro de Mitríades.
MITRÍADES
Ah! Já me vencestes. Éreis o meu único adversário. Mas temei a sombra da minha sombra. A morte é mais ligeira que o sono.
As sombras dos três lutam metafisicamente
açuladas pelos respectivos amos.
A de Agrifonte fez presa
no pescoço da de Mitríades.
Mentres, a de Hamlet ladra à lua, afugentando-a.
Um furacão impiedoso leva as três sombras,
que desaparecem gesticulando no horizonte.
Mitríades morre definitivamente
entre torpes mecanismos.
AGRIFONTE
E agora, já sem sombras, sejamos francos, Hamlet: vós também amais Margarida.
HAMLET
Nem pensar.
AGRIFONTE
Pois, por que se bateu vossa sombra contra o nosso pobre e chorado Mitríades?
HAMLET
(Deziotisticamente) Plo amor. Em geral.
AGRIFONTE
Agora percebo tudo. (Com forte acento estrangeiro) Hamlet, prepara-te; vou contar tudo à tua mamã!
HAMLET
Conta, conta. Mentres, vou para o barroco cavalinho de cartão.
Agrifonte sai a jogar ao arco.
A mãe de Agrifonte incrustada na parede derrama
uma longínqua lágrima.
Quatro donzelas inclinam-se chorando
sobre o cadáver de Mitríades para levá-lo depois
pelo revolto caule do dia.
(Hamlet - Tragédia Cómica, Luis Buñuel (Mário Cesariny (trad.))
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