Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um corpo
incompreensível
aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino tristeza de menino a quem
tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira
de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os
que ainda podem interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o espaço
te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua
arrasta a sua condição de animal fulminado
depois olhas para mim, olhas para as tuas mãos, e elas
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de um
soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo
deserto
mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do
homem é doce e iluminada como a noite como um
rasto de fumo sobre os hospitais
tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras paragens;
outra sombra, outros olhos semelhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os meus,
altos como cidades, altos como flores
parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais
que descer as escadas, fechar ainda a porta do teu
quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida
agora posso sonhar até deixar de te ver
belo rio sem lágrimas
(Mário Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital)
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